ENTREVISTAS VISÃO 02.06.2019 às 19h04
Marcos Borga
Xavier Viegas, investigador da Universidade de Coimbra, garante, em entrevista à VISÃO, que o problema dos incêndios associado às linhas elétricas tem vindo a aumentar. "Chegámos a 2017 com uma contribuição de 20% destas linhas para a área ardida". Em 2018, se incluirmos o incêndio de Monchique, "vai para 68%"
Hugo Séneca
Domingos Xavier Viegas já viu muitos fogos, mas não esperava que a triste ironia o apanhasse em outubro de 2017: no penúltimo dia de redação do relatório da Comissão Técnica Independente que estava a estudar o grande incêndio de Pedrógão Grande, que vitimou 66 pessoas, a equipa do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais (CEIF) é chamada à pressa para defender os laboratórios no coração da Lousã, que se encontravam cercados pelas chamas que haveriam de vitimar mais 49 pessoas. Em ambos os casos, o professor da Universidade de Coimbra, que é também um dos mais conceituados especialistas no estudo dos incêndios em Portugal, não hesita em apontar o dedo às linhas elétricas.
Há uma relação direta entre as linhas elétricas e a ignição de incêndios?
Ocorrem milhares ou dezenas de milhares de incêndios por ano no País. Claro que nem todas as ocorrências são causadas pelas linhas elétricas, mas temos investigado várias ocorrências causadas pelas linhas elétricas... ou porque as autoridades, como a PJ, nos pedem ou porque isso faz parte do nosso trabalho. Há casos em que podemos ter um indício ou uma convicção, mas podemos não ter a capacidade de fazer prova, o que confirma a necessidade de estudar e de conhecer melhor este problema.
Os fogos originados pelas linhas elétricas geram indícios diferentes daqueles que têm outras causas?
Sim, claramente. Há um incidente, em fevereiro de 2005, que levou à morte de quatro bombeiros e que está claramente relacionado com uma linha elétrica de média tensão, com 15 quilovolts, em Mortágua. Foi algo que verificámos, era um dia de vento forte... Há também outro caso em Poiares, em que fomos chamados pela PJ para ajudar na obtenção de prova. Nesse caso, foi encontrado o eucalipto que tinha tocado na rede elétrica, e havia sinais claros disso. A parte de cima do eucalipto estava queimada. Depois desse contacto, houve folhas em combustão que caíram, e havia indícios de que o fogo se propagou a partir dali. Aquele eucalipto não se incendiou, mas outros começaram a arder a partir daquele ponto.
Há muitos casos similares?
Há algumas situações em que vimos a linha elétrica partida. Depois do contacto e com o aquecimento, a linha elétrica quebra e cai no chão... tivemos vários casos desses investigados. Numa ou noutra situação, até houve uma tentativa para disfarçar as coisas, cortando a árvore que esteve em contacto com a linha elétrica.
Foi isso que aconteceu em Pedrógão Grande? Ou devemos acreditar na tese que viria a abrir caminho a reportagens de TV com a árvore que, alegadamente, foi atingida por um raio?
Essa tese está fora de questão. No princípio, levantou-se essa hipótese, porque nesse dia aconteceu uma trovoada seca que, de facto, causou focos de incêndio, nas zonas de Castelo Branco e de Portalegre. É óbvio que era bem mais fácil, para a opinião pública e para as autoridades, aceitar que a tragédia tivesse sido causada pela Natureza. Não haveria, portanto, culpado ou responsável pelo incêndio. As autoridades embarcaram nela e foram ao ponto de indicar a árvore. Depois, investigando um pouco mais e começando logo pelo Instituto Português de Meteorologia e Atmosfera (IPMA), que analisou os registos, comprovou-se que não tinha havido descarga na zona do incêndio, a não ser muito depois do início do fogo. E há ainda mais um dado, que muita gente ignora ou quer ignorar: na zona do incêndio, havia um conjunto de câmaras de vídeo que registava tudo o que se passava em 360 graus. Uma das câmaras apontava para a Escalos Fundeiros, onde o incêndio começou. O dia estava limpo, o céu azul... Não se vê raios, não se vê nuvens, não se vê coisa nenhuma. Mas havia um cabo elétrico e alguns ramos em várias árvores enegrecidos...
A PJ ignorou isso?
Fizemos, na altura, fotografias com um drone e, para nossa surpresa, a EDP foi autorizada a cortar e a limpar a ramagem toda... E não só aí como em Regadas (Cimeiras), onde se registou um segundo foco.
As provas foram eliminadas?
Não digo que tenham sido eliminadas, porque guardámos muito material, mas, curiosamente, quem estivesse atento e fosse ao local podia ver uma coisa interessante: o tal cabo enegrecido estava no meio da ramagem, mas, como essa foi cortada, então ficou completamente à vista. E nós tirámos fotos de uma coisa e de outra. Em Regadas, o caso é mais claro, porque houve um senhor que viu que o fogo começou ali junto à linha elétrica e tentou apagá-lo com um extintor. Não conseguiu, e o fogo propagou-se. Falei com muita gente no terreno... e havia indícios de que o fogo terá começado com folhas a arder, que caem no chão, e depois vai encontrando caminho até à base da encosta e segue por aí acima.
As autoridades ignoraram as opiniões de especialistas e de testemunhas? Houve uma barreira política?
Não faço ideia. Mas queria dizer outra coisa: muita gente ignorou o segundo foco de incêndio. Todos pensam que o fogo começou na tal árvore (de Escalos Fundeiros), mas houve um segundo ponto em Regadas, que fica a três quilómetros... Apurámos que o incêndio teve aquelas consequências por ter dois focos que se desenvolveram de forma independente e depois se encontraram. Foi o facto de esses dois focos se terem juntado que criou condições de propagação tão graves. É um processo de feedback... Um incêndio alimenta o outro.
A PJ nunca se insurgiu contra as vossas teses?
Nas causas, a PJ foi perentória: oficialmente, disse que a causa era aquela árvore (atingida por um raio) e, quando lhes perguntámos se não poderia rever a sua posição, disseram-nos que esta era para manter. Não sei se vai fazer alguma reanálise...
É uma questão importante para efeitos de seguros...
Não sei por que razão a PJ não mostrou até agora abertura para reapreciar o caso... Tivemos esta investigação em junho e, depois, surgiram os incêndios de outubro. Felizmente, já tínhamos terminado o relatório, que entregámos ao Governo a 16 de outubro. Mas, no dia 15 de outubro, quando nos encontrávamos aqui (na Universidade de Coimbra) a trabalhar, estava tudoà volta a arder. Tivemos de interromper o trabalho para prestar apoio ao nosso laboratório na Lousã, que estava em risco. Admito que a PJ ainda não tenha reanalisado este processo (de Pedrógão Grande), mas tanto quanto sei, no julgamento que está em curso no Tribunal de Leiria, há uma acusação que responsabiliza a EDP. Além disso, nas estatísticas oficiais (do Estado), a causa do incêndio de Pedrógão Grande já é descrita como associada às linhas elétricas.
Que estatísticas oficiais são essas?
Na base de dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, o incêndio de Pedrógão Grande está indiciado como causado pelas linhas elétricas...
Também foram as linhas elétricas que desencadearam o incêndio da Lousã, em outubro de 2017?
Referimo-nos a esse incêndio como sendo do Prilhão, por se tratar do local de origem, no concelho da Lousã. Também nos chamaram logo a atenção para uma linha elétrica ligada ao incêndio... e contactámos a EDP. Gosto de fazer as coisas de modo transparente e, além disso, precisamos dos dados de que a EDP dispõe... Os colegas da EDP discordaram de nós, mas dissemos-lhes que os argumentos que nos dão não nos levam a mudar essa convicção.
Os incêndios podem ser gerados em qualquer tipo de linha elétrica?
Deixe-me contar-lhe outro episódio, em 2016, num incêndio em Anadia, que o Ministério Público me pediu para investigar. Tudo começou de madrugada, no início de agosto, numa linha elétrica de baixa tensão, de 400 volts – o que confirma que este problema existe não só na média tensão como na baixa tensão. Também aí havia a tal situação do eucalipto que tocava na linha elétrica... O incêndio começou num vale relativamente isolado, perto de uma aldeia, onde vivem algumas pessoas que assistiram às descargas que iniciaram os fogos. É indubitável que o incêndio começou ali. E aconteceu uma coisa curiosa. Falámos com testemunhas oculares que moravam ali perto e que assistiram ao início do incêndio. Os responsáveis da EDP vieram ao nosso laboratório (na Lousã). Apresentámos o nosso relatório, enquanto eles nos mostraram o deles, que negava claramente que a linha elétrica tivesse qualquer relação com o incêndio...
Esse relatório estava correto?
Eles mostraram-nos que estavam a fazer trabalhos na linha elétrica a meio da manhã e que, àquela hora, não havia incêndio... só que, realmente, o incêndio estava a deflagrar a cerca de 100 ou 200 metros do local onde aqueles homens estavam… e aqueles homens tiveram de sair dali pouco depois. Houve uma apresentação parcial da realidade... Temos estatísticas que mostram que o problema associado às linhas elétricas tem vindo a aumentar. [Pega numa folha com um gráfico.] Esta é a percentagem de ocorrências entre 2003 e 2018, e não incluímos aqui o incêndio de Monchique, porque oficialmente a causa ainda não foi determinada. Podemos ver uma linha que ronda as 20 mil ocorrências por ano com causas conhecidas... e que é mais ou menos constante ao longo do período estudado. E depois temos o númerode ocorrências cuja causa é atribuída à linha elétrica e que vai entre 20 e 30, em 2003, a mais de 100, em 2017 e em 2018. O mais impressionante disto é o efeito em termos de área ardida, que também tem vindo a crescer, e chegámos a 2017 com uma contribuição de 20% das linhas elétricas para a área ardida. Em 2018, ainda não se incluiu Monchique, mas, se o incluirmos, vai para 68 por cento...
Muitos desses incêndios acabaram por produzir vítimas mortais...
Em 2003, registaram-se 23 vítimas mortais, mas nenhuma resultou de um incêndio iniciado pelas linhas elétricas. Em 2005, foram contabilizadas 22 vítimas, cinco delas vítimas de incêndios causados por linhas elétricas, o que corresponde a 22,7% do total. Em 2017, houve 117 vítimas, das quais 79, ou seja 67%, resultaram de incêndios causados por linhas elétricas. Uma coisa muito importante que temos verificado é que a percentagem de incêndios desta natureza aumenta com a dimensão dos fogos. Os grandes incêndios, com mais de mil hectares, são aqueles que têm maior percentagem de fogos causados pelas linhas elétricas.
O que se pode fazer para alterar este panorama?
Uma das soluções também pode passar por aquilo que algumas empresas dos EUA já fazem: em dias de elevado risco, a rede é desligada. Assim, não há riscos... Claro que têm de pagar indemnizações brutais, mas acaba por ser um valor menor do que as indemnizações por vítimas mortais... que levaram à falência de grandes empresas elétricas da Califórnia, devido aos grandes fogos do passado recente. Outra solução passa por enterrar as linhas, ou alterar completamente o traçado, colocando-as em pontos mais elevados ou levando a rede elétrica a acompanhar as linhas de comunicação, como as estradas...
Mas isso implica alterar milhares de quilómetros de rede!
Poderá não ser toda a rede. Temos de compreender que o País foi todo eletrificado nos últimos anos, com um grande esforço e investimento, mas se calhar não se teve em conta este risco...
Os incêndios em Portugal vão tornar-se tão regulares como a neve na Suíça?
Claramente. É certo que vamos ter incêndios todos os anos e alguns bem graves... Há uma grande falta de preparação e muito pouco esforço concertado para preparar o País para este problema. Vou dar-lhe um exemplo: há muitos anos que defendo que deveria existir um programa nacional de investigação científica nesta área...
... E não há?!
Não há. Agora estamos a tentar criar um programa, mas de forma totalmente desconchavada, com tiros para todas as direções, sem planos, sem estratégias e sem esforços concertados.
Eventualmente, só será feito quando o fogo estiver às portas de Lisboa, do Porto ou de Coimbra. Há esse risco?
Não deveria ser necessário. Em 2005, aqui [Coimbra] ardeu tudo à volta. O fogo veio de Poiares com projeções... e só não queimou o Jardim Botânico por uma sorte muito grande. Se tivesse caído uma fagulha na parte de baixo, teria ardido o Jardim Botânico. Temos de ir preparando as pessoas. Os cidadãos são os primeiros afetados por uma catástrofe e são também os primeiros que tentam dar uma resposta. E muitas vezes não terão apoio.
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