Ocupados com resolução das crises financeiras, concentrados na busca de cura para as doenças que nos afligem, esquecemos frequentemente aquele que é, porventura, o mais importante desafio para as próximas décadas: como alimentar uma população mundial que, atualmente com 7.2 biliões de habitantes, deverá atingir os 10 biliões em 2050. Um desafio que se afigura particularmente difícil, tendo em conta que as condições climáticas se tornarão progressivamente mais adversas para a atividade agrícola. Ao longo do século 20 observou-se já um significativo aumento da população mundial. Não obstante, foi possível evitar a escalada de crises alimentares graças a um aumento acentuado da produção agrícola. E esta aumentou, sobretudo, devido à introdução de inovações tecnológicas na agricultura: novas variedades de plantas agrícolas, mais produtivas e resistentes a doenças e stresses ambientais, além de produtos de síntese química (fertilizantes, herbicidas e pesticidas), aliados à mecanização da agricultura. Isto constituiu a chamada revolução verde, personificada no cientista norte-americano Norman Borlaug, que viria a ser prémio Nobel da Paz em 1970.
O efeito da revolução verde, porém, foi-se progressivamente esgotando. Hoje, os ganhos anuais de produtividade de algumas das principais culturas agrícolas (por exemplo, da soja e da cana de açúcar) estão substancialmente abaixo dos necessários para fazer face à procura crescente. Reconhece-se que é necessário um novo salto tecnológico na agricultura, em particular no que respeita à produção de novas variedades agrícolas. A engenharia genética de plantas cumpriu apenas parcialmente aquilo que prometia. Se é certo que produziu variedades eficazes na resolução de alguns problemas (por exemplo, na resistência aos insetos que atacam as culturas), tem-se revelado pouco eficaz na produção de variedades mais eficientes no uso da água, ou resistentes a stresses ambientais como as ondas de calor ou a salinização dos solos. A razão compreende-se: a adaptação a estes stresses exige um conjunto de respostas coordenadas, envolvendo muitos genes, que são difíceis de intervencionar por meio das técnicas de engenharia genética.
É certo que se estão a explorar vias alternativas promissoras, por exemplo, alteração de genes reguladores, que podem afetar simultaneamente múltiplos aspetos do metabolismo, ou a alteração de genes dos sistemas antioxidantes, que mitigam os danos causados por stress oxidativo, um stress secundário que decorre da maioria dos stresses ambientais. Mas é ainda do melhoramento convencional, agora apoiado por técnicas de genética molecular, que têm surgido as melhores soluções. É este tipo de melhoramento que importa, e muito, acelerar. As técnicas de sequenciação genética evoluíram grandemente nas últimas décadas, sendo possível, hoje, sequenciar genomas a uma velocidade muitíssimo mais alta, e a custos muito mais baixos. Ou seja, a capacidade que temos para conhecer o genótipo de uma planta - isto é, a informação que consta de um conjunto dos seus genes - está hoje muito facilitada. Porém, a capacidade de conhecermos o seu fenótipo - as caraterísticas do corpo da planta (número de folhas, dimensão das espigas, etc.), determinadas pela interação da informação existente nos seus genes com as condições ambientais de crescimento - evoluiu muito menos, e permanece largamente dependente de medições manuais morosas e dispendiosas, pela quantidade de mão-de-obra que envolvem.
Ora, nos processos de melhoramento genético das plantas, é necessário analisar um grande número de exemplares (milhares, frequentemente) à procura daqueles que melhor exprimem as características que nos interessam, de modo a selecioná-los para serem usados em cruzamentos subsequentes. A dificuldade na fenotipagem constitui hoje, portanto, o principal obstáculo ao aceleramento da produção de novas variedades de plantas agrícolas. Consequentemente, a comunidade científica internacional concentrou-se em desenvolver novas tecnologias capazes de acelerarem o processo de fenotipagem de plantas: as designadas tecnologias de fenotipagem de alto débito. Estas tecnologias assentam, principalmente, na captação de imagens digitais das plantas e no seu processamento informático automatizado, permitindo o cálculo preciso de parâmetros como as taxas de crescimento ou a biomassa produzida, de um grande número de plantas, num curto espaço de tempo. Adicionalmente, alguns dos equipamentos já construídos permitem obter informação espectral sobre as plantas, em diversas gamas do espetro eletromagnético, que fornece indicações, por exemplo, sobre a quantidade de água presente nas folhas, sobre a taxa de transpiração ou sobre a quantidade de clorofila. Outros, mais sofisticados, incorporam câmaras capazes de detetar a fluorescência emitida pelas moléculas de clorofila nas folhas, o que dá uma indicação da fotossíntese que estas estão a fazer. Este conjunto de sensores capta uma enorme quantidade de dados da planta, que têm que ser processados informaticamente (recorrendo a técnicas de inteligência artificial e / ou a análise estatística multivariada) e armazenados em segurança.
O desenvolvimento de sistemas de fenotipagem de alto débito é um esforço marcadamente interdisciplinar, envolvendo especialistas em ciências das plantas (biólogos, sobretudo fisiologistas vegetais, e agrónomos), em instrumentação e em robótica (físicos e engenheiros eletrotécnicos) e em processamento de informação (engenheiros informáticos). Envolve, portanto, investimentos avultados, que têm sido acompanhados por processos cooperativos a diversos níveis. A ação COST "Phenomen-ALL - The quest for tolerant varieties", prestes a terminar, desempenhou um papel extremamente importante neste contexto, tendo permitido a consolidação de uma comunidade científica europeia empenhada no desenvolvimento da fenotipagem de plantas. É de saudar o facto de a comunidade científica portuguesa ter sobressaído pelo número de investigadores - sobretudo jovens - que fizeram uso dos recursos disponibilizados, para participarem em encontros científicos, cursos de verão e missões científicas de curto prazo. Infelizmente, até ao momento, não dispomos em Portugal de nenhuma plataforma de fenotipagem de plantas de alto débito.
Os investigadores portugueses, se quiserem utilizar esta tecnologia, podem recorrer à European Plant Phenotyping Network 2020, que reúne um conjunto de equipamentos (plataformas) de diversos países, disponibilizadas a outros países com o apoio do Programa Horizonte 2020. Trata-se, portanto, de uma iniciativa temporalmente delimitada, que deverá tornar-se permanente através da iniciativa EMPHASIS.
A possibilidade de podermos aceder a esta tecnologia constitui, naturalmente, uma mais valia. Mas temos que nos questionar se nos desejamos remeter, numa tecnologia emergente com esta importância, ao papel de utilizadores, ou queremos ter um papel ativo no seu desenvolvimento. Sabemos bem que, no atual paradigma tecnocientífico, a liderança científica está fortemente associada à liderança tecnológica. E o desenvolvimento de uma tecnologia tão marcadamente interdisciplinar tem o potencial para transbordar para outras áreas, criando oportunidades difíceis de caraterizar a priori.
O facto de o mercado agrícola português ser de pequena dimensão - e, portanto, da procura interna de sementes melhoradas estar correspondentemente limitada -, não nos deve inibir: se o País optou por uma economia aberta, deve fazê-lo também na área da investigação e desenvolvimento agrícola. Existe um potencial mercado privilegiado: o da CPLP. Os países que a integram, em particular os africanos, têm necessidades crescente de novas sementes melhoradas, o sector de I&D agrícola português - dispondo de plataformas de fenotipagem de alto débito - pode contribuir para supri-la. Na Faculdade de Ciências da ULisboa, o Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (BioISI) tem, desde há 3 anos, reunidos biólogos, físicos e informáticos em torno de projetos exploratórios de fenotipagem de plantas. O recente financiamento, pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, do projeto INTERPHENO, que visa construir um protótipo de plataforma de fenotipagem de alto débito (semi-automatizada), coordenado pelo BioISI/FCUL e envolvendo o Instituto Superior de Agronomia, o ITQB-NOVA e o INESC-Inovação, pode constituir a porta de entrada da comunidade científica portuguesa para esta tecnologia.
Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas - BioISI
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