quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Pelo reforço da cadeia de valor na fileira do leite

OPINIÃO

Intervenção realizada na audição parlamentar sobre o sector do leite
(Assembleia da República, 15 de Fevereiro de 2011)

Pedro Pimentel

O sector do leite e produtos lácteos vale, hoje, um volume de negócios
anual próximo dos dois mil milhões de euros. Vale 1,3% do PIB, vale
quase 15% do sector agro-alimentar e é um dos mais importantes
subsectores daquele que continua a ser o mais importante sector
económico do país.

Na área da transformação colaboram cerca de 10 mil trabalhadores. Dele
dependem quase 10 mil explorações leiteiras que dão trabalho e geram
rendimento a mais de 30 mil pessoas. Do sector lácteo depende -
directa e indirectamente - o rendimento de quase 100 mil famílias.
O convite para a Audição organizada pela Comissão Parlamentar de
Agricultura refere que "o sector produtivo leiteiro vive um período de
grande agudização dos seus problemas económicos, estando mesmo em
causa, a sustentabilidade de muitas explorações" e essa é uma verdade
inequívoca.
O agravamento dos factores de produção, que está a colocar em causa a
viabilidade das explorações, é, contudo, paralelo ao que se vive no
sector industrial, onde para além dos sucessivos aumentos do preço do
leite ao produtor há uma inflação galopante que ataca os restantes
custos de produção: combustíveis, energia, transportes, embalagens,...
Em relação ao preço do leite, em Dezembro, último mês relativamente ao
qual possuímos informação, Portugal apresenta um preço médio de 32,2
cêntimos face a um preço comunitário de 32,3 cêntimos. O preço do
leite no Continente subiu para os 33,4 cêntimos, ou seja os preços do
leite no nosso país voltaram estar em linha com os preços praticados
na União Europeia. Mas gostaríamos, também, de recordar que, em
relação há um ano atrás, o preço ao produtor nacional aumentou 11,5%
(ou seja 3,3 cêntimos). Se nos reportarmos apenas aos preços do leite
no Continente aquela percentagem sobe para quase 13%, isto é, mais 3,8
cêntimos.
Apesar disso, gostaríamos de chamar a atenção que estes aumentos têm
sido feitos apesar de não se verificar uma escassez sensível do leite
no mercado e que estes aumentos têm sido feitos apesar de as empresas
industriais não estarem a conseguir repercutir os incrementos dos
preços do leite e dos outros factores de produção nos seus preços de
cessão, ou seja, nos preços de venda dos seus produtos aos seus
clientes directos: as grandes cadeias de distribuição.
Seria importante falar da evolução da política comunitária para o
sector e muito especialmente para o desmantelamento do sistema de
quotas leiteira ou sobre o respectivo impacto na estrutura da nossa
produção leiteira ou sobre o aprovisionamento das unidades industriais
portuguesas, mas queria direccionar a minha atenção para o que
consideramos um facto: a forma mais viável de atingir a
sustentabilidade da fileira passa por conseguir vender bem os nossos
produtos, por colocar os nossos produtos no mercado de forma rentável.
Porém, é necessário que o mercado funcione, que funcione de forma
transparente e mais justa, dando oportunidades similares a todos os
produtos, proporcionando uma adequada repartição da rentabilidade
pelos diferentes elos da cadeia!
A pressão exercida pela distribuição moderna é sentida por todos os
sectores ditos do grande consumo, mas é especialmente forte no sector
de lacticínios, seja por se tratar de um sector que fornece um leque
alargado de produtos básicos, seja por ser dos sectores fornecedores
mais organizados, seja, por muito paradoxal que tal possa parecer,
pelo facto de o sector ser autosuficiente e especialmente direccionado
para o mercado nacional.
Recorde-se que os fornecedores pagam elevados valores para vender os
seus produtos na distribuição. Esses pagamentos ultrapassam geralmente
os 40% do valor das suas vendas às grandes cadeias comerciais e esses
pagamentos assumem as formas mais imaginosas.
Os mais importantes clientes exigem aos seus fornecedores margens
garantidas, mas pretendem, ainda assim, apresentar ao consumidor os
preços mais baixos do mercado. É, verdadeiramente querer o melhor dos
dois mundos... as melhores margens comerciais e os preços ao
consumidor mais competitivos...
A ausência de alternativas equivalentes e o risco de saída de linha
são argumentos que fazem com que as empresas fornecedoras sejam
coagidas a aceitar estas exigências.
As empresas fornecedoras são confrontadas, para além disso, com a
fortíssima concorrência dos produtos de Marca de Distribuidor, que
apresentam como principal argumento comercial os preços mais baixos.
Especula o consumidor como é possível o diferencial de preços que se
verifica e deixa-se transparecer, sem nunca o desmentir, que alguns -
as cadeias de distribuição - estão preocupados com o bem-estar e o
rendimento disponível dos consumidores, enquanto outros - os
fabricantes - querem apenas manter os seus lucros e a sua
rentabilidade.
Mas será essa, efectivamente, a realidade? Será que os produtos de
marca própria têm uma estrutura de custo assim tão distinta? Será que
os produtos de marca branca e os produtos de marca de fabricante,
quando entram nos armazéns da distribuição, apresentam realmente
aqueles diferenciais de preço? Será que as margens que os
distribuidores aplicam aos seus próprios produtos são idênticas às que
aplicam aos produtos das marcas de fabricante? Há ou não subsidiação
cruzada entre produtos?
Na verdade, aplica-se aquilo que se diz no anúncio do Pingo Doce:
"baixa-se de um lado, aumenta-se do outro"... Nunca se deve perder de
vista que o preço de venda ao público dos produtos é da inteira
responsabilidade do distribuidor, que a margem que é aplicada a cada
produto é da inteira responsabilidade do distribuidor.
Em Outubro último, a Autoridade da Concorrência apresentou o seu
relatório sobre as relações entre a Distribuição e os seus
Fornecedores. O sector lácteo foi daqueles que mereceu uma atenção
mais pormenorizada. A Autoridade foi muito assertiva na identificação
de muitos aspectos que penalizam o tecido fornecedor, constatando que
existe um enorme desequilíbrio nas relações comerciais entre
distribuidores e fornecedores e constatando que esse desequilíbrio é
agravado pelo papel desempenhado pelas marcas de distribuidor.
Constatou muito, mas as recomendações produzidas no Relatório são
praticamente inócuas. Não se questiona a ausência de actuação
fiscalizadora, nem é posto em causa o não exercício da função
reguladora por parte da própria Autoridade. Sugere-se a implementação
de alterações legislativas, mas não se aponta qualquer pista em
relação às linhas de evolução da legislação em matéria de
concorrência, de práticas restritivas do comércio ou em relação às
regras a que deverá obedecer a presença das marcas de distribuidor no
mercado...
As dificuldades económicas que o país atravessa levam à utilização de
produtos lácteos de marcas de distribuidor como isco para a atracção
dos consumidores aos seus espaços comerciais. As políticas comerciais
da distribuição acabam por promover uma destruição de valor ao longo
de diferentes segmentos de mercado, obrigando as marcas de fabricante
a sucessivas compressões de preços e de margens por forma a não
perderem definitivamente o mercado para as vulgarmente chamadas marcas
brancas.
As mais importantes empresas aparentemente têm que optar entre
defender a sua rentabilidade ou defender a sua quota de mercado, mas,
em boa verdade, essa é uma falsa questão, pois, no contexto comercial
actual, não é possível defender a rentabilidade sem possuir quota de
mercado.
O recurso ao aprovisionamento das suas marcas brancas no exterior é
outra das formas de colocar pressão adicional sobre o sector, pois,
sendo conhecida a existência de produtos lácteos suficientes no nosso
mercado, gera-se no seio do sector a necessidade de encontrar formas
de escoamento, obviamente menos rentáveis, para a matéria-prima
sobejante.
Já falamos do agravamento dos preços do leite à produção, mas as
indústria lácteas confrontam-se, para além disso, com aumentos nos
restantes factores de produção que excedem também os 10%. O impacto
sobre o custo total dos produtos ronda os 8 a 9%.
Contudo, a distribuição tem sistematicamente recusado todas as
propostas de actualização dos preços por parte dos seus fornecedores.
O bloqueio total à aceitação desses aumentos de preços é justificado
pelos distribuidores com as dificuldades financeiras dos nossos
consumidores, mas tal não os impede de exigir condições de
fornecimento ainda mais gravosas aos fabricantes.
A manter-se este estado de coisas, muitas empresas no sector poderão
ser, a breve trecho, obrigadas a implementar cortes radicais nas suas
estruturas, com potencial impacto muito negativo também a nível de
emprego e, por outro lado, estarão incapacitadas de actualizar os
preços do leite ao produtor, colocando em sério risco uma enorme
parcela da produção leiteira nacional.
Referia há dias o presidente da APED em declarações públicas que "a
distribuição não é um serviço público. É um negócio e tem o direito de
decidir que marcas/produtos coloca na prateleira" e, acrescentamos
nós, de decidir também a origem desses produtos, e a prática há muito
que se encarrega de confirmar - sem qualquer sombra de dúvidas - essas
afirmações.
A indústria gostaria, obviamente, de poder comprar os volumes de que
necessita, quando deles necessita, com a melhor qualidade possível, ao
menor preço possível… Dir-se-á que é exactamente isso que a moderna
distribuição faz, o que não deixa de ser verdade!
No entanto, há entre as duas - indústria e distribuição - uma
significativa diferença: a indústria depende do produtor de leite, dos
seus produtores de leite, destes produtores de leite; a moderna
distribuição depende dos seus fornecedores, mas destes fornecedores ou
de quaisquer outros: portugueses, franceses, holandeses ou polacos…
A discussão hoje, a nível nacional e europeu, faz-se em torno da
questão da criação de condições para que seja possível pagar um preço
justo ao produtor. No entanto, por muito que os políticos e as
políticas pretendam, por si só, resolver essa questão, nunca será
possível pagar um preço justo ao produtor, se o mercado não pagar um
preço justo pelos produtos fabricados com o seu leite.
E é fundamental que todos percebam que tão importante como o preço que
o consumidor paga quando compra o leite, o queijo ou o iogurte num
qualquer supermercado, é o preço que é pago a quem fabrica esses
mesmos produtos, porque há que adquirir a consciência de que essas
duas realidades são cada vez mais distintas.
Apenas resolvendo esta dificuldade, ou seja, se conseguirmos que o
consumidor pague um preço adequado pelos produtos lácteos que adquire
e se conseguirmos também que o fabricante seja justamente remunerado
pelos produtos que fornece, então sim, será possível pagar de forma
sustentada um preço mais justo ao produtor…
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011
Pedro Pimentel
Presidente da Direcção da Associação Nacional dos Industriais de
Lacticínios (ANIL)

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