quinta-feira, 31 de março de 2011

LEITE, UM SECTOR A ACARINHAR

ENTREVISTA: Pedro Pimentel
Ruminantes: Portugal tem neste momento um dos preços do leite mais
baixos à produção na Europa, quando historicamente sempre foi o
contrário. Como explica este facto?
Pedro Pimentel: É razoavelmente simples a explicação: primeiro, nós
tivemos um preço à produção que, na fase em que os preços quebraram
brutalmente em toda a Europa, não quebrou aqui da mesma forma; e temos
hoje um preço à produção que não teve a evolução crescente que em
determinado momento a Europa teve. Se ponderarmos os últimos três
anos, o preço médio à produção foi claramente superior em Portugal; o
produtor ganhou mais dinheiro em Portugal do que na Europa. Esta
situação passa-se concretamente a partir de Abril, Maio de 2010 e tem
vindo a prolongar-se, mas neste momento a nossa aproximação à curva já
está muito próxima, quer porque os nossos preços têm vindo a subir,
quer porque os preços nos outros países não tiveram uma evolução tão
"dramática " ou tão forte como se chegou a falar — eu diria que
estamos cada vez mais próximos da média europeia.

Recordemos mais uma vez que, quando falamos de preço português nos
estamos a referir a uma combinação de dois preços, e por isso também é
preciso ter em consideração que quando falamos desse distanciamento à
média, o mesmo tem a ver com a combinação dum preço mais baixo — o que
se verifica nos Açores — com um preço mais alto — o que acontece no
Continente. Mas há uma outra questão fundamental: nós destinamos cerca
de 80% da nossa produção ao mercado interno. E o problema que
verificamos é que a euforia de preços em termos europeus, que
acompanham a euforia do preço das matérias-primas, deriva de uma
situação resultante da evolução económica em determinadas zonas do
mundo: Ásia, Rússia, Brasil, etc.
Se compararmos, contudo, a evolução do nosso preço com a verificada em
países como Espanha ou França a nossa evolução foi muito mais positiva
na quebra e menos ampla na subida do que se verificou noutros
momentos. Nunca ninguém se queixou quando os preços lá fora estavam a
21 ou 22 cêntimos e cá se pagava a 28 cêntimos, hoje obviamente os
produtores sentem que os preços evoluíram de outra forma no exterior.
A questão que o produtor deve tentar compreender é que nós temos hoje
dos preços mais baixos de prateleira nos supermercados, e essa é uma
questão relacionada com a situação económica que o país atravessa e
não significa que todos os compradores não tenham a percepção clara
que a estrutura de custos de uma exploração leiteira está a viver um
período critico.

Ruminantes: Qual a perspectiva para a evolução do preço do leite à
produção durante este ano?
Pedro Pimentel: Não tenho, infelizmente, uma bola de cristal mas julgo
que não é possível pensar que o preço do leite à produção se pode
manter se os custos de produção continuarem a aumentar neste ritmo...

Ruminantes: ...e acha que a indústria está sensível a esta situação?
Pedro Pimentel: ...Claro que está, a industria está sensível por
várias vias, por uma questão de responsabilidade social, mas também
porque somos uma indústria de proximidade não nos podemos abastecer no
mercado mundial em termos de matéria-prima, temos que comprar leite em
Portugal. E como tal, há uma preocupação clara, pois nós enquanto
industria existiremos enquanto houver tecido produtivo que nos
abasteça. Por outro lado, recordo que há 15 anos atrás tinhamos quase
80.000 produtores, hoje temos 10.000 e não conheço nenhum que tenha
abandonado a actividade e tenha regressado.
Nós já temos sentido nos últimos tempos alguma limitação da produção,
ela não tem crescido, antes pelo contrário. Isso não se tem sentido
muito em termos de mercado, porque devido à crise financeira o consumo
não tem disparado. Mas a grande verdade é que, no momento em que o
crescimento do consumo regressar — porque os tempos hão-de melhorar —
iremos debater-nos com um problema de abastecimento interno. Por isso
é que as indústrias têm que continuar a acarinhar os seus produtores.

Ruminantes: ...mas acha que o preço do leite ao produtor ainda pode
subir este ano? ...
Pedro Pimentel: Se nós conseguirmos reflectir esses aumentos no preço
dos bens que vendemos...

Ruminantes: Que factores influenciam a definição do preço do leite à
produção em Portugal?
Pedro Pimentel: O preço do leite à produção, por muitos mecanismos de
regulação que existam, é definido por uma coisa tão simples como a
oferta e a procura. Em qualquer momento em que a oferta seja inferior
à procura, independentemente do ciclo económico que se viva, o preço
sobe. Quando não há escassez de leite no mercado, não há uma pressão
da parte da procura no sentido de aumentar o preço, porque não sente
essa necessidade. Apesar da produção ter diminuído, não há falta de
leite em Portugal...
Ruminantes: ...não há porque importamos...
Pedro Pimentel: ...não há porque importamos, e quem importa induz a
substituição do consumo de produtos nacionais por produtos importados,
isto é, a importação de leite não é feita pelo industrial, é feita
pela distribuição; e, ao não comercializar o nosso leite, vai obrigar
a que uma parte do leite produzido em Portugal tenha que ser
canalizado para o mercado externo, muitas vezes em condições que não
são as mais vantajosas, o que faz com que não haja da parte dos nossos
industriais uma pressão no sentido de dizer ao produtor que precisa de
mais leite, e é isso que influi basicamente na definição do preço.

Ruminantes: Como compara os custos de recolha do leite em Portugal
comparativamente com a média europeia?
Pedro Pimentel: Grande parte do volume de leite produzido em Portugal
tem custos de recolha competitivos. Estamos a falar sempre de uma
recolha com uma distância relativamente curta. A competitividade da
recolha de 80% do leite português é bastante elevada. Onde ela
realmente tem dificuldade é nas pequenas explorações mais distantes.
Numa parte substancial do leite produzido no nosso país, a recolha não
é um factor limitante à competitividade, diria mesmo que temos uma
recolha bem organizada e evoluída, embora não tenha dados que nos
permitam comparar os custos médios com os de outros países.

Ruminantes: Poderá chegar o dia em que o preço a pagar pelo leite ao
produtor esteja "ligado" contratualmente ao preço das principais
matérias primas utilizadas na alimentação das vacas?
Pedro Pimentel: Do meu ponto de vista, esse dificilmente poderá ser o caminho.

Ruminantes: Sendo a procura de leite pouco flexível e o mercado das
matérias-primas muito volátil, que impacto poderá ter nos produtores
de leite portugueses?
Pedro Pimentel: Apesar de se tratar de um mercado maduro, alguma
situação como a que se passou recentemente com o açúcar gera uma
procura enorme e desequilíbrios, e o leite pode estar sujeito a isso.
Ruminantes: A globalização do mercado pode ser positiva para o preço
do leite à produção? Pedro Pimentel: Sim, sem dúvida. Até porque
estamos normalmente a falar de mercados em crescendo que têm uma
capacidade de auto-abastecimento muito limitada. Por isso, por muito
que desenvolvam a sua produção —e estão a desenvolvê-la — ficarão
sempre aquém do incremento do consumo, criando uma oportunidade de
colocação de produtos lácteos provenientes de outros locais.

Ruminantes: O custo de transporte, face ao actual preço do petróleo,
influi na localização geográfica da produção?
Pedro Pimentel: Penso que há sempre uma vantagem na proximidade da
produção, no leite mais até do que noutros produtos. Existem dois
factores que se cruzam: um é o próprio custo do combustível, o outro é
a eficiência da logística. Se por um lado os custos dos combustíveis
têm crescido muito, por outro, a eficiência da logística tem também
evoluído muito, o que faz com que, em termos práticos, o custo do
transporte não tenha sofrido uma evolução tão drástica como a que
derivaria directamente do incremento do combustível. É na logística
que muitas vezes a rentabilidade se constrói. Conseguir agrupar
volumes que permitam reduzir os custos, etc. Mas claro que a evolução
dos custos vai ter impacto com o aumento do petróleo, e irão começar a
surgir factores adicionais de opção, como a pegada de carbono.

Ruminantes: A crise no sector leiteiro está a levar ao abandono de
muitas explorações. Como encara a indústria esta situação?
Pedro Pimentel: Existem dois tipos de abandono. Aquele que podemos
designar como abandono por inércia, que é, em grande parte, o que se
tem verificado ao longo dos anos, com um impacto não demasiadamente
negativo, do ponto de vista do aprovisionamento, da estruturação da
produção, ou do próprio ponto de vista social. É o que poderemos
chamar de revolução silenciosa, que resultou numa diminuição de 70.000
produtores em menos de vinte anos. Não se sentiu uma convulsão social
associada a este abandono, foi causado pelo abandono de muitas
pequenas explorações. Ou seja, é um abandono natural e, do ponto de
vista da estruturação, necessário. Actualmente, estamos a entrar no
abandono de explorações que podem ser viáveis. Estamos a falar do
abandono de explorações geridas por pessoas com idade para poderem ter
uma expectativa de manutenção na actividade durante mais alguns anos.
E essa é uma situação preocupante, pois percebemos que explorações que
nós pensamos serem viáveis e competitivas começam a fechar. Nós, o
Estado, todos temos que acarinhar essas explorações e encontrar meios
para evitar que isto aconteça...

Ruminantes: …Em que é que a indústria pode materializar esse acarinhamento?
Pedro Pimentel: Pode fazê-lo pela via óbvia, através do preço do
leite, mas também numa série de outras formas. Apoiando o produtor,
por exemplo na sua revisão de estrutura de custos, criando condições
para que ele possa dinamizar a sua actividade e consiga ter custos de
exploração mais baixos.

Ruminantes: Na sua perspectiva, o que devem fazer os produtores de
leite para assegurar a sobrevivência?
Pedro Pimentel: Uma melhor utilização dos meios de produção e uma
maior cooperação na sua utilização. Qualquer factor que faça com que
um investimento fixo se torne variável em função do nível de
actividade tem duas vantagens: a redução do valor total e a adaptação
ao ciclo produtivo. Se preciso de produzir mais, recorro mais; se
preciso de produzir menos, recorro menos. Outra questão tem muito que
ver com a alimentação animal, e na forma como internamente temos que
começar a encará-la. Como comprador de matérias-primas, o produtor de
leite tem que começar a pensar se deve continuar a ir ao
"supermercado" comprar a sua alimentação animal ou se deve construir a
sua reserva. Penso que aqui, uma vez mais, uma a cooperação pode ser
fundamental, havendo zonas do país que não sendo propicias para a
produção de leite poderiam ser adequadas para a produção de
alimentação para os animais. Outro exemplo poderiam ser os parques de
recria fora das explorações. Isto são factores que podem influenciar e
bastante os custos da produção leiteira. Ou seja, um aumento da
profissionalização e um aumento da cooperação. Penso que a ideia de
que cada produtor por si só vai resolver o seu problema, pode
funcionar para um ou dois ou dez, mas dificilmente funcionará para os
restantes.

Ruminantes: Estando os custo de produção de leite bastante altos, como
pensa a indústria garantir o abastecimento do leite que necessita?
Pedro Pimentel: Como já referi, ela tem que se abastecer internamente
até porque nós vivemos ao lado de um país, o único com quem fazemos
fronteira que é altamente deficitário na produção de leite e onde,
portanto, não podemos pensar em abastecer-nos de forma continuada;
apesar de pontualmente ser muito fácil comprar umas cisternas de
leite...

Ruminantes: Considera o licenciamento das explorações de leite (REAP)
uma ameaça ao abastecimento da indústria?
Pedro Pimentel: Considero, e temos transmitido isso ao Governo, quer
pela via mais directa, mas também juntamente com organizações mais
representativas do lado da produção. Para dar um exemplo concreto:
muitas das nossas empresas estão a apostar na certificação quer da
empresa quer dos produtos e não podem certificar um produto quando a
matéria-prima que utilizam no fabrico do mesmo não provem de uma
exploração licenciada.

Ruminantes: Qual a origem do leite para consumo importado por Portugal em 2010?
Pedro Pimentel: As principais são Espanha, França, Alemanha e Polónia.

Ruminantes: Que percentagem do leite recolhido em Portugal é
transformado em produtos de valor acrescentado?
Pedro Pimentel: Do leite produzido em Portugal, noventa e muitos por
cento são transformados em qualquer coisa. Não é forçosamente de maior
valor acrescentado um produto mais transformado, isto é, um leite UHT
pode ter um valor adicional mais baixo, mas isso não significa que
seja menos rentável que o queijo flamengo ou que um iogurte de
sabores. Na situação actual e com a crise financeira existente, os
produtos de maior valor acrescentado tendem, infelizmente, a diminuir
a sua quota de mercado.

Ruminantes: O que leva a distribuição a importar leite em detrimento
do leite nacional, quando este está a ser pago a um preço inferior ao
do Norte da Europa?
Pedro Pimentel: A distribuição acusa permanentemente qualquer sector
fornecedor de que para ser seu fornecedor tem que ter quatro coisas:
quantidade, qualidade, preço e serviço. Isso faz com que, muitas
vezes, as empresas se tenham que reestruturar, e ganharem a dimensão
necessária para poderem satisfazer a cadência das encomendas que a
distribuição realiza. O problema do sector do leite em Portugal parece
ser o de conseguir dar resposta àquelas exigências. E o de existir uma
empresa com alguma dimensão e que consegue fazer alguma frente à
própria distribuição. As importações de leite são muitas vezes feitas
não por que exista uma necessidade do produto (nós somos
auto-suficientes) nem por uma questão de preço (porque existe leite
nacional ao preço do leite importado), mas sim para pressionar as
empresas nacionais e, em especial, um determinado operador.

Ruminantes: Está prevista a abolição das quotas leiteiras em 2015. Que
impacto haverá sobre a produção nacional e o abastecimento à
indústria?
Pedro Pimentel: Os estudos que existem mostram que vai ter impactos
positivos em determinados países e impactos bastante negativos, em
termos de volumes produzidos, noutros países. Portugal está no grupo
de países, considerados pela UE, em que o impacto vai ser mais
negativo. A questão vai colocar-se de uma forma bastante simples, em
relação ao ciclo de preços que vai estar associado ao fim das quotas.
A nossa expectativa diz-nos que, muito provavelmente, com o
desmantelamento das quotas e a liberalização da produção, os preços
tendencialmente cairão. Havendo mais produção de leite na União
Europeia, os preços tenderão a descer. A própria quebra na produção
que deverá resultar dessa descida de preços, mas também a crescente
procura a esse nível poderá gerar uma posterior subida dos preços. É
aí que a verdadeira questão se vai colocar: se tivermos uma quebra de
20 e 25% dos preços (como se chegou a falar), eu diria que o impacto
seria brutal e imediato em termos de fecho de explorações. São curvas
de oferta e procura sucessivas, é obvio que se houver uma quebra
brutal da produção, os preços voltarão a subi. O problema é que os
nossos produtores não têm capacidade de aguentar ciclos de quebra de
20 a 25% durante 2 ou 3 anos. E daí podermos pensar que poderá haver
uma quebra brutal da produção em Portugal, derivad desse momento no
tempo.
Continuo a achar que temos que encontrar formas em que o produtor, com
ou sem quotas, adquira uma dimensão de exploração e uma estrutura de
custos mais competitiva, que lhe permita resistir a preços mais
baixos. A minha expectativa pessoal é que o cenário de quebra de
preços que foi desenhado inicialmente não se vai verificar, mas
falta-me a bola de cristal. A sensação que tenho é que a Europa,
produzindo mais, terá também capacidade de fornecer mais aos mercados
extra-europeus. Logicamente que para nós era óptimo que outros países
não pudessem fazer crescer indefinidamente as suas produções. Porquê?
Porque se os mercados dos países terceiros se fecharem - por crise
económica, higiénica ou outra - às exportações comunitárias, se
verificará uma situação crítica. Nessa situação, onde se colocaria
toda a produção existente na Europa? Ou seja, do ponto de vista
teórico o fim das quotas é um factor altamente penalizador para o
sector, em Portugal. Do ponto de vista prático, vai depender muito do
ciclo conjuntural em que estas coisas acontecerem sendo que, não
havendo mecanismo das quotas à primeira crise que acontecer, nós vamos
sofrer fortemente.

Ruminantes: O ministério da agricultura diz que o fim das quotas
leiteiras ameaça todo um sector. Que tem feito ou planeado fazer o
ministério para minimizar este risco ou esta constatação?
Pedro Pimentel: Em termos de sector lácteo não se fez nada, nada
mesmo. Quando estamos numa guerra de sobrevivência no sector,
introduzir o REAP é introduzir um factor de entropia. Os sistemas de
apoio foram criados no momentos errados e com as fórmulas erradas...

Ruminantes: Que impacto no consumo de leite tem tido a crise económica?
Pedro Pimentel: Nota-se alguma quebra no consumo, mas é uma quebra
bastante mais notória quando quantificada em valor. Desde finais da
década de noventa que temos tido uma evolução de consumo apenas
ligeiramente positiva, sendo que a evolução passou essencialmente pela
venda de menos produtos básicos e de mais produtos mais evoluídos. A
grande inversão desse ciclo faz-se em 2009/2010 e passa exactamente
pela regressão para os valores que existiam antes. Ou seja,
verifica-se uma efectiva perda de valor ao longo da cadeia.

http://www.revista-ruminantes.com/noticias/entrevista/leite-um-sector-acarinhar

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