sábado, 8 de junho de 2013

A maçã espanhola deprime-me

Todas as frutas e legumes do supermercado são mais viajados do que eu



07/06/2013 | 00:01 | Dinheiro Vivo

O nosso primeiro-ministro lembra uma embalagem bem desenhadinha que
passou pela linha de montagem da fábrica da política mas falhou o
enchimento. Ficou vazia, só embalagem, nada lá dentro. Ainda assim
seguiu o seu curso, foi distribuída e vendida. Infelizmente parece que
não há (ou não funcionam) mecanismos de defesa do consumidor da
democracia. Se ao menos a fábrica em questão, o PSD, mandasse retirar
o produto por ser incapaz de cumprir as funções que anunciou, há dois
anos, que iria cumprir…

Mas não é isto que me deprime. Revolta-me, não me deprime.

A oposição também é produto da linha de montagem da fábrica da
política. O Seguro lembra-me um produto de marca branca, daqueles que
imitam os genuínos. Se tem alguma coisa lá dentro de qualidade, ou se
falhou também o enchimento, é coisa que não se sabe, desconfia-se. Se
alguma coisa lá houvesse já tinha dado sinais. Mas também isto não
chega a deprimir-me. Entristece-me saber que ali também não há futuro,
não me deprime. Posso sempre votar nos lunáticos da extrema-esquerda
(ou no Paulo Portas) para lhes dar uma lição.

Também me revolta o fraquíssimo jornalismo que, por muitas razões,
económicas e não só, deixou de ter qualidade e controlo de qualidade.
Mas não chega a deprimir-me. Há sempre outras coisas para ver e ler.

O que verdadeiramente me deprime é a fruta.

Nos supermercados e nas mercearias há pêssegos, pêras e maçãs. Mas é
fruta viajada, com cartão de milhas: pêssego espanhol, limão espanhol,
maçã espanhola, tomate espanhol, alho espanhol, cebola espanhola,
espargos espanhóis e pepino espanhol. Não quero comprar mas não tenho
alternativa. Preciso de comer fruta e legumes e não há nada de outras
origens em muitos destes supermercados; nem mais caro.

Vejo limoeiros cheios de limões na beira da estrada, em quintais e
saguões de casas lisboetas. Mas o limão que vi à venda era espanhol.
Também vejo nespereiras com nêsperas a apodrecer, mas no supermercado
e na mercearia perto de casa a nêspera é espanhola.

É triste olhar para a terra e ver que não dá uma maçã que acabe num
supermercado. Mesmo que fosse uma maçã pior. Eu de bom grado comia uma
maçã portuguesa, com bicho e tudo, em vez de uma normalizada, viajada,
espanhola, a saber a nada. E onde estão as pêras pequenas, tamanho
"juvenil", que se comiam no Verão? Nesta altura, precisamente. Eu ia
para a praia com a minha avó, em Junho, e havia sempre pêras pequenas,
deliciosas. Desapareceram. Parece que não têm tamanho europeu.

Cada vez que entro num supermercado e vejo que todas as frutas e
legumes são mais viajados que eu – ainda hoje de manhã fui ver e só a
laranja e, ironicamente, o nabo eram portugueses – deprimo. As
etiquetas onde se lê "origem Espanha" são um lembrete quotidiano,
corrosivo, da nossa incapacidade, da nossa dependência, da nossa
menoridade. A falta de soberania alimentar enraivece-me,
entristece-me, deprime-me.

Publicitário, psicossociólogo e autor
Escreve à sexta-feira
Escreve de acordo com a antiga ortografia

http://www.dinheirovivo.pt/Buzz/Artigo/CIECO165198.html?page=0

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