Histórias
Uns plantam para comer, outros porque querem um estilo de vida mais
saudável. Todos estão a tornar a cidade mais verde.
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Por:Vanessa Fidalgo
Há cada vez mais agricultores em Lisboa e as suas hortas ocupam já 300
mil m2 na capital. O fenómeno não é novo: cresceu ao mesmo ritmo que a
cidade, graças às gentes de origem rural que, chegadas à urbe,
continuaram a cultivar as raízes no quintal ou num baldio perto de
casa. Só que as hortas estão a atrair cada vez mais cosmopolitas de
nascença e criação, quer pela possibilidade de complementar o
rendimento em tempo de crise, quer entusiasmados por uma nova forma de
ser e estar na urbe, mas ao ritmo da terra.
A perspectiva de uma vida mais saudável convenceu a arquitecta
Margarida Moreira, professora na Universidade Técnica de Lisboa. Há
dois anos, viu-se a braços com um cancro e decidiu que "a vida tinha
de mudar para melhor". Atacou em várias frentes e uma delas passou por
alugar e cultivar uma horta no Museu Nacional do Traje.
Margarida passou da palavra à prática: "Deixei de ir ao ginásio e
passei a vir para a horta. Faz-me melhor e ajuda-me a relaxar. Depois
da doença comecei a dar importância à alimentação biológica. Aqui não
uso químicos". Aos 52 anos, residente na Alta de Lisboa e sem qualquer
ligação anterior ao meio rural, anda a aprender com quem "sabe mais"
os segredos da agricultura. Joaquim, vizinho de talhão, não perde a
deixa e aponta um engano. "Parece que já plantei os morangos ao
contrário", confessa divertida. Mas as suas favas e nabiças estão de
fazer inveja a qualquer supermercado do País.
FORMA DE SUSTENTO
Além da horta, o tal vizinho, Joaquim Cardoso (60 anos), reformado da
manutenção militar, pouco mais tem em comum com Margarida. É natural
de Proença-a-Nova, mas "quem ali fica a trabalhar na terra é para
morrer à fome". Para lhe fugir, veio para Lisboa ainda menino e moço e
agora, já reformado, reencontrou na agricultura forma de se entreter e
poupar "muitos euros na conta do supermercado". Da terra retira favas,
ervilhas, couves, alhos, brócolos, cebolas e cenouras. O talhão no
Museu do Traje custa-lhe 34 euros ao ano.
Ali ao lado, Jorge Tavares, na pré-reforma depois de uma vida como
técnico administrativo, "começou por curiosidade" e volta todos os
dias "porque as plantas o exigem". É uma verdadeira enciclopédia da
agricultura biológica: planta cenouras ao lado do alho-francês porque
as culturas combatem as pragas uma da outra, assim como o tomate põe
as lagartas a milhas das couves e as epidemias de caracóis se combatem
com cinzas de madeira. Não dispensa o fertilizante, mas o seu é
especial: uma maceração de urtigas, que ao fim de 10 dias é "um
poderoso composto". Tudo informação retirada "da net", a sua 'bíblia'.
Existem regras bem claras no Museu do Traje, onde a política de
aluguer anual dos 30 talhões hortícolas contíguos ao Parque Botânico
já vai na 3ª edição. O preço é estabelecido por leilão e, na última
edição, as licitações foram dos 40 cêntimos aos três euros por metro.
"Prevalece a óptica da sustentabilidade e rentabilização de água,
fornecida pelas nascentes do parque. Existem acções de formação, há
condições de acesso e horários, recomendamos que não sejam usados
produtos químicos e não é permitido plantar árvores ou arbustos",
explica Clara Vaz Pinto, directora do Museu.
Sem regras no 'papel' funcionam as hortas da Quinta da Granja, mesmo
debaixo do 'nariz' do Centro Comercial Colombo, em Benfica. Quem ali
cultiva – maioritariamente reformados da freguesia – fá-lo há vários
anos, num espaço que entretanto foi devidamente legalizado para o
efeito e que mais parece um jardim de formas e cheiros. Celeste Barros
veio do Minho na "juventude" e nunca conseguiu desapegar-se do amor à
terra: "Se não fosse obrigada a ganhar dinheiro, só fazia isto", diz a
ex-operária fabril (cujo desemprego a atirou para as limpezas), ao
lado de frutas, legumes e vários canteiros de cravos, rosas,
malmequeres e gladíolos que são o seu "orgulho".
Todos os dias, faça chuva ou sol, passa pela horta e como há sempre
"coisas para fazer", acaba por ali deixar-se ficar até o sol se pôr,
indiferente ao trânsito e às buzinadelas que desembocam da avenida
Lusíada, mesmo ali ao lado. Só se queixa dos roubos: "Em vésperas do
Natal, levaram-me 40 couves". Contra os gatunos, conta com a ajuda
vigilante dos vendedores ambulantes da zona que já "impediram um
ladrão de levar uma saca de tomates".
REMODELAÇÃO TOTAL
Consciente do novo interesse dos alfacinhas, a autarquia fez um plano
de intervenção nas áreas hortícolas, muitas delas com parcas condições
de acesso e qualidade, como é o caso do Vale de Chelas. O projecto
estará concluído em 2013 mas, para já, numa das maiores áreas baldias
da capital, as hortas estão lado a lado com entulho e lixo de toda a
espécie. No futuro, haverá jardins e até um mercado hortícola.
A população que ali cultiva é carenciada, proveniente dos bairros
sociais em redor, e há meses em que dependem da horta para comer.
Joaquim Andrade, cabo-verdiano há 40 anos em Portugal, acha que a
ideia de reordenar "é boa", mas teme que o projecto o retire dali e
acabe com um ganha-pão que, aos 71 anos, é o único que lhe permite
viver com uma reforma de "duzentos e poucos euros".
Ao lado, está a horta de Rosa Torilda, 77 anos. Todos os dias sai de
casa, no bairro do Armador, para percorrer a pé o vale onde cuida das
suas "hortaliças, alfaces e feijões". Rosa anseia pela revitalização
do espaço: "Daqui a vista é tão bonita... mas há ratazanas e roubos.
Apanham tudo o que podem para vender. Nem se pode deixar a sachola".
Depois, há casos misteriosos. Em pleno centro histórico, no Campo das
Cebolas (ao lado da estação ferroviária de Santa Apolónia) crescem
couves, alhos-franceses e morangos. Não se sabe quem teve o engenho de
aproveitar um canteiro da praça para deitar sementes à terra, e no
comércio local as informações divergem: há quem diga que foram os
arrumadores de carros e há quem jure a pés juntos que a horta é de um
"velhote de Alfama, mas há dias que não aparece". Certo é que a
plantação está pronta a colher, indiferente ao bulício da cidade.
CÂMARA CRIA HORTAS COMUNITÁRIAS
Além da requalificação dos espaços já existentes, a Câmara Municipal
de Lisboa planeia a criação de novas hortas comunitárias na Alta de
Lisboa, Telheiras, Jardins de Campolide e Mouraria. Nelas, os vizinhos
comprometem-se a partilhar muito mais do que as contas de condomínio.
Espera-se que se encontrem aos fins-de-semana faça sol ou chuva, de
enxada na mão, para retirar da terra bens consumíveis para todos.
"Os espaços agrícolas garantem o equilíbrio ecológico, com a
manutenção da humidade, da temperatura, do oxigénio e prevenção da
erosão, amenizando o impacte ambiental da excessiva pressão
demográfica e criando uma teia de relações sociais", justifica o
vereador José Sá Fernandes.
"A maioria ocupa espontaneamente os solos produtivos que sobram da
edificação e, por não serem devidamente regulamentadas, nem sempre
apresentam uma imagem com a qualidade paisagística que se exige aos
espaços verdes municipais. Contudo, elas reflectem a capacidade
criativa das populações e por isso é preciso reconhecer as suas
potencialidades", reconhece o vereador.
NOTAS
300 MIL METROS QUADRADOS
Actualmente, as hortas – legais ou espontâneas – ocupam 300 mil metros
quadrados da cidade de Lisboa.
ALUGUER
No Museu do Traje, os talhões são leiloados. Em 2010 as licitações
foram dos 40 cêntimos aos três euros.
COMUM
Na Alta de Lisboa, há muito que a comissão de moradores reivindica a
criação de uma horta comunitária no bairro.
CHELAS
O Vale de Chelas é a maior horta espontânea da cidade, com 143 684
metros quadrados de áreas cultivadas.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/em-lisboa-estao-a-nascer-agricultores
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