ANA GERSCHENFELD
22/05/2013 - 00:00
Folhas infectadas pelo míldio da batata há mais de um século (em
baixo) foram usadas para obter o ADN de uma devastadora praga
histórica MANUEL ROBERTO
Pela primeira vez, foi sequenciado o genoma de uma praga histórica das
plantas a partir de folhas, conservadas em herbários durante mais de
100 anos, do hospedeiro dessa praga
Uma equipa de cientistas da Alemanha, dos EUA e do Reino Unido
anunciou ontem ter identificado, ao nível genético, exactamente qual
foi a estirpe do fungo Phytophthora infestans - ou míldio da batata -
que aniquilou as culturas de batata na Irlanda em 1845, matando um
milhão de pessoas à fome nos seis anos que se seguiram e forçando um
outro milhão a emigrar. Os resultados são publicados na recém-criada
revista de acesso livre eLife.
"Descobrimos finalmente a identidade da estirpe que causou aquela
catástrofe", diz Hernán Burbano, um dos autores do estudo, do
Instituto Max Planck, na Alemanha, citado num comunicado da Sociedade
Max Planck, instituição que edita a nova revista em colaboração com o
Instituto Médico Howard Hughes norte-americano e o Wellcome Trust
britânico.
Poucas doenças das plantas tiveram um impacto sobre as populações
humanas comparável ao do míldio da batata, escrevem os cientistas,
lembrando que a batata foi importada da América Latina pelos espanhóis
no século XVI. Três séculos mais tarde, o Phytophthora infestans
chegava ao Velho Continente, espalhando-se rapidamente da Bélgica para
o resto da Europa continental e para os actuais Reino Unido e Irlanda.
E a população irlandesa, que dependia fortemente da batata para a sua
subsistência, não resistiu. "Ainda hoje", lê-se no artigo, "a
população irlandesa é inferior a 75% do que era no início da década de
1840." Mais: hoje em dia, esta praga - que literalmente rói e faz
apodrecer os tubérculos de batata - continua a ser, a nível mundial, a
mais devastadora para esta espécie agrícola, ocasionando perdas anuais
"que seriam suficientes para alimentar entre 80 milhões e muitas
centenas de milhões de pessoas", frisam os cientistas.
Durante muito tempo, pensou-se que a Grande Fome tinha sido causada
pela estirpe actualmente dominante de Phytophthora infestans a nível
mundial,chamada US-1, que surgira nos Estados Unidos pouco tempo antes
da catástrofe irlandesa. Mas, há uns dez anos, as primeiras análises
genéticas do míldio presente em folhas antigas, conservadas em
herbários, de plantas de batata infectadas, vieram mostrar que o fungo
devastador do século XIX não pertencia à estirpe moderna. Porém, na
altura, os cientistas que realizaram essas análises apenas conseguiram
obter informações muito limitadas - e insuficientes para identificar o
fungo com precisão. Mas agora, com o avanço das técnicas de
sequenciação do ADN, foi possível, a partir de folhas secas com 120 a
170 anos, reconstituir o genoma do fungo responsável pela Grande Fome
e caracterizar totalmente o microrganismo.
"Os herbários representam uma fonte muito rica, e ainda por explorar,
com a qual poderemos aprender imenso acerca de distribuição histórica
das plantas e das suas pragas - e também acerca da história das
populações que as cultivavam", diz o co-autor Kentaro Yoshida, do
Laboratório Sainsbury, no Reino Unido, citado pelo mesmo comunicado.
Os investigadores sequenciaram a totalidade dos genomas de 11 amostras
dePhytophthora infestans extraídas de folhas de batata colhidas ao
longo de mais de 50 anos, provenientes da Europa e dos EUA e
conservadas na Colecção Botânica Estadual de Munique e no jardim
botânico de Kew, em Londres. E quando compararam esse ADN com o de
estirpes modernas do míldio, incluindo a US-1, concluíram que a
estirpe em causa na Irlanda, embora parecida com a US-1, era diferente
de todas as outras. Baptizada HERB-1, terá emergido no início do
século XIX e ter-se-á espalhado pelo mundo ao longo dos 100 anos que
se seguiram.
Os cientistas sugerem ainda, com base na comparação das datas de
recolha dos espécimens dos herbários e das datas de colheita das
estirpes modernas de míldio, que no século XVI os primeiros contactos
entre populações europeias e americanas e as perturbações sociais que
eles geraram terão estimulado a diversificação, migração e expansão do
míldio para fora do seu ponto de origem - que se pensa ter sido o Vale
de Toluca, no México -, contribuindo para acelerar a sua evolução. E
que foi já no século XX - e só após a introdução de novas variedades
de batata - que a estirpe HERB-1 terá sido substituída pela actual
US-1.
"Talvez a estirpe [HERB-1] tenha ficado extinta quando as primeiras
variedades resistentes foram criadas, no início do século XX",
especula Yoshida. "O que é certo", salienta, "é que estes resultados
vão ajudar-nos imenso a perceber a dinâmica dos agentes patogénicos
emergentes" e que "abrem a via à descoberta de muitos outros tesouros
do conhecimento escondidos nos herbários".
http://www.publico.pt/ciencias/jornal/identificado-fungo-responsavel-pela-grande-fome-na-irlanda-no-seculo-xix-26568022
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