sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A retirada perigosa das regras do comércio mundial

25 Dezembro 2013, 23:30 por Pascal Lamy

Durante os últimos 50 anos, o mundo conheceu uma "grande
convergência", com os rendimentos per capita nos países em
desenvolvimento a crescerem quase três vezes mais rápido do que nos
países mais avançados.

Mas os acontecimentos de 2013 revelaram que o regime de comércio livre
que facilitou este progresso está agora sob uma grave ameaça, à medida
que o impasse nas negociações do comércio multilateral estimula a
proliferação de "acordos preferenciais de comércio" (PTA, na sigla
original), incluindo os dois maiores acordos alguma vez negociados – a
Parceria Trans-Pacífico (TPP, sigla original) e a Parceria
Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, sigla original).

As regras e normas que surgiram com o Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (GATT, sigla original) e com o seu sucessor, a Organização
Mundial do Comércio (OMC), apoiaram o modelo de crescimento baseado
nas exportações. Modelo esse que permitiu aos países em
desenvolvimento tirar milhões de pessoas da pobreza. A ironia é que a
ascensão de muitas economias em desenvolvimento a uma importância
sistémica está no centro do actual impasse nas negociações comerciais
multilaterais.

Os países desenvolvidos argumentam que as economias emergentes devem
abraçar a reciprocidade e estabelecer regimes comerciais semelhantes
aos seus. As economias emergentes alegam que os seus rendimentos per
capita são bastante mais baixos que os dos países desenvolvidos e
insistem que, abordar os seus enormes desafios de desenvolvimento,
exige flexibilidade em termos das suas obrigações comerciais. O
impasse resultante impediu uma discussão séria sobre as questões
essenciais – incluindo medidas não tarifarias, restrições às
exportações, comércio electrónico, taxas de câmbio e as implicações
para o comércio das políticas relacionadas com as alterações
climáticas – levantadas por uma economia aberta mundial.

Contrariando estes argumentos, os grandes acordos preferenciais de
comércio parecem preparados para reformar o comércio mundial. As
negociações do TPP envolvem dezenas de países da Ásia, América Latina
e América do Norte, incluindo o Japão, México e Estados Unidos. O TTIP
engloba as duas grandes áreas económicas mundiais, a União Europeia e
os Estados Unidos, e a Parceria Económica Regional Ampla (RCEP, sigla
original) incluiu 16 países da Ásia-Pacífico. O Japão está também a
desenvolver um acordo com a China e com a Coreia do Sul, bem como um
acordo com a União Europeia.

Tais acordos preferenciais alegadamente têm o potencial para
melhorarem as condições para além das fronteiras dos países que
assinam estes documentos. Se tanto o TPP como o TTIP produzirem
reformas significativas no que diz respeito aos subsídios agrícolas,
que provocam distorções comerciais – tornando-se no primeiro acordo
não multilateral a fazê-lo – os benefícios seriam verdadeiramente
internacionais. Mas os acordos preferenciais que existem actualmente
estão a ser negociados com um maior foco na regulação do que nas
tarifas, o que torna necessário que os participantes alcancem um
acordo quanto a um amplo conjunto de regras de execução, como por
exemplo, investimento, competição justa, saúde e padrões de segurança
e regulação técnica.

Isto representa vários obstáculos. Enquanto algumas medidas não
tarifarias podem ser facilmente rejeitadas por serem consideradas
proteccionistas, muitas outras servem os objectivos legítimos da
política pública, tal como a segurança dos consumidores ou a protecção
ambiental, o que faz com que seja difícil assegurar que eles não
entram em conflito com os princípios básicos da justiça e da abertura.

Além disso, tais acordos podem fechar vários grupos em diferentes
abordagens regulatórias, o que leva a uma subida os preços das
transacções para o comércio interno e torna difícil que os bens
externos e serviços entrem no bloco. Tal segmentação de mercado pode
perturbar as cadeias de valor e levar a uma diversificação comercial
prejudicial ao nível da eficiência.

Finalmente, a capacidade dos grandes acordos preferenciais em
estabelecer normas que beneficiem os não participantes pode provar ser
mais limitada do que muitos acreditam. As regras do comércio
transatlântico sobre a valorização da moeda, por exemplo, podem deixar
o Japão indiferente. E as regras específicas de protecção à
propriedade intelectual podem não fazer mais do que evitar que o
Brasil e a Índia participem.

Ultrapassar estes obstáculos pode exigir, antes de mais, algum nível
de coerência entre os acordos preferenciais, como vários acordos a
seguir aproximadamente princípios semelhantes quando abordam questões
regulatórias. Além disso, se o regionalismo for percebido como
coercivo e hostil, os países podem formar blocos comerciais
defensivos, o que pode levar à fragmentação económica e elevar tensões
relacionadas com a segurança. Para evitar este desfecho, os acordos
devem ser relativamente abertos para os recém-chegados e receptivos à
possibilidade de "multilateralização".

Mas a necessidade de coerência política vai para além dos grandes
acordos preferenciais. Óptimos resultados para o comércio
internacional exigem atenção a todos os níveis para que haja uma
relação entre comércio e várias outras áreas políticas.

Considerando a segurança alimentar. Políticas nacionais eficazes no
que diz respeito aos terrenos, água e à gestão de recursos naturais,
infra-estruturas e redes de transporte, serviços agrícolas, direitos
de propriedade, energia, armazenamento, crédito e pesquisa são tão
importantes como os acordos comerciais para transferir alimentação dos
países que têm excedentes para aqueles que precisam.

Da mesma maneira, a cooperação regional no que diz respeito à água e
às infra-estruturas é fundamental para melhorar as relações
diplomáticas e estabelecer mercados funcionais. E, ao nível
multilateral, a produção agrícola e o comércio está influenciado por
políticas que dizem respeito a subsídios, tarifas e restrições à
exportação (embora o último não esteja actualmente a ser governado por
regras estritas da OMC).

Apesar do grande valor da cooperação regional e de políticas nacionais
coerentes, um sistema de comércio multilateral funcional continua a
ser vital. De forma a revigorar a cooperação comercial multilateral,
os governos têm de trabalhar em conjunto para abordar questões que
ainda não estão solucionadas desde a agenda de Doha, tais como a
escalada dos subsídios e tarifas na agricultura. Para ser claro, o
acordo alcançado na recente conferência ministerial da OMC, em Bali,
representa uma bênção para o comércio mundial e para a cooperação
multilateral.

Mas os governos têm de alargar a agenda para incluir linhas
orientadoras cujo objectivo seja assegurar que grandes acordos
preferenciais não levam à fragmentação económica. As futuras regras da
OMC sobre as restrições às exportações podem ajudar a estabilizar os
mercados internacionais das matérias-primas agrícolas. O comércio de
serviços pode ser mais liberalizado e os subsídios industriais podem
evitar que os objectivos de inovação ecológica dos países se percam
devido à pressão doméstica para impulsionar o emprego.

Além disso, as regras mundiais para o investimento podem melhorar a
eficiência da alocação de recursos, enquanto as linhas orientadoras
internacionais, para as políticas de concorrência, serviriam de forma
mais eficiente os interesses dos consumidores e de grande parte dos
produtores do que o sistema actual retalhado. Aumentar a cooperação
com o Fundo Monetário Internacional sobre questões cambiais e com a
Organização Internacional do Trabalho sobre os padrões de trabalho
pode diminuir as tensões comerciais e aumentar a contribuição do
comércio para a melhoria das condições de vida das pessoas.

Uma estratégia partilhada para abordar as medidas não-tarifárias
poderia ajudar os países a evitar atritos comerciais desnecessários. E
novos desenvolvimentos na produção de energia podem facilitar uma
cooperação internacional mais significativa sobre o comércio de
energia e investimento.

Tudo isto exigiria que as economias emergentes aceitassem um possível
alinhamento nos seus compromissos comerciais com os países
desenvolvidos e os países avançados teriam de aceitar que os países
emergentes merecem um longo período de transição. De 2014 em diante,
todas as partes têm de reconhecer que, num mundo multipolar, um
sistema de comércio internacional baseado num conjunto de regras
actualizadas é a forma menos arriscada de perseguir os seus objectivos
de crescimento. O acordo da OMC recentemente alcançado em Bali, na
simplificação de controlos fronteiriços, entre outras questões, mostra
que os passos importantes nesta direcção podem de facto ser dados.



Pascal Lamy. Antigo director-geral da Organização Mundial do Comércio
é, actualmente, presidente da Comissão Oxford Martin para as Gerações
Futuras

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2013.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Laranjeiro

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/a_retirada_perigosa_das_regras_do_comercio_mundial.html

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