sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Os bombeiros morrem solteiros

Publicado em 2013-12-12


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Nelson Mandela foi em certo sentido um bombeiro do seu tempo. Deu a
vida pelo bem comum. Trago o seu nome a este texto porque a
incompreensão que desfez parte da sua vida durante o 'apartheid' é um
pouco a mesma que trucida os bombeiros nos incêndios todos os verões.

O relatório de Xavier Viegas, um especialista de renome internacional
em fogos, provavelmente não pode tirar outra conclusão que não seja a
de sublinhar a negligência dos operacionais no terreno e dos seus
chefes nas centrais de comando. Faltam agora as ilações do ministro da
Administração Interna, Miguel Macedo. Mas é por este prisma redutor de
análise que se percebe por que continuam a morrer bombeiros. Discutir
se os meios de combate são suficientes, e quanto tem de se gastar mais
no ano seguinte, é a conversa superficial.

O problema real está noutra equação: a gigantesca dimensão do
eucaliptal em Portugal, uma espécie exótica que se tornou na principal
espécie arbórea do país, cujo único objetivo é abastecer as celuloses
enquanto gera desertos de biodiversidade em seu redor. Esta
monocultura egoísta e desadaptada ao país reflete-se numa agricultura
menos produtiva porque não está rodeada de habitats variados, mas é
também uma das causas do despovoamento de um interior que vive num
"barril de pólvora". A espiral destruidora entende-se à crescente
eutrofização de albufeiras - mais poluídas por cinzas e com água pior
para consumo humano e agrícola. Até as cidades ficam irrespiráveis com
incêndios incontroláveis se as condições climatéricas forem propensas
a isso, como se viu este verão.

As corporações de bombeiros voluntários sabem que combater fogos em
condições extremas é arriscadíssimo. E se vão para estes fogos de
coração aberto, arriscam muito. É um ciclo vicioso: mais fogos
representam mais meios, mais homens, gerando investimentos (para
terceiros e para si próprios) de centenas de milhões de euros todos os
anos - 3,2 mil milhões de dinheiro público em onze anos, segundo o JN.
O ganho principal, no entanto, fica nas celuloses e madeireiros porque
beneficiam do dinheiro público para apagar incêndios e transacionam
matéria-prima de um país ardido e ao desbarato.

Contrariar esta espiral exige coragem. Os bombeiros podiam/deveriam
dizer que vão deixar arder a floresta (protegendo apenas casas e
pessoas) porque não é possível combater este Portugal sem outro
"Ordenamento do Território". Sejamos lúcidos: não há multas que façam
os proprietários pegar nas enxadas para limparem terrenos de alguma
dimensão. E mandar limpar pode custar, todos os anos, mais de mil
euros por hectare. Tudo isto porque, idealmente, a Secretaria de
Estado das Florestas acha que pode continuar a estimular o crescimento
do eucaliptal, numa lógica de criação de 'riqueza económica', à custa
de uma economia que só beneficia quem produz papel. Um hectare de
eucaliptos, cortado de 10 em 10 anos, vale pouquíssimas centenas de
euros. Quando arde, ainda menos.

Repare-se: há um mês o Governo anunciou garbosamente que a Portucel
iria fazer mais um investimento de 120 milhões de euros em Cacia. Toda
a gente parece achar bem - é mais emprego, exportações e
desenvolvimento. Eu também defendo mais emprego e exportações, mas não
este tipo de desenvolvimento. Mas só um país cada vez mais
terceiro-mundista permite o crescimento desordenado de uma
matéria-prima que representa já mais de 25% de toda a floresta e, em
menos de cem anos, vai inutilizar os solos onde cresceu.

Claro, nessa altura nem nós estamos cá, nem os ministros ou
secretários de Estado das Florestas irão a votos. Mas por isso é que é
preciso classificar de potenciais homicidas todas as pessoas que
estimulam este Portugal sem pés nem cabeça. O problema é sempre o
mesmo: é fácil ser hoje admirador de Mandela. Difícil era estar ao
lado dele quando ele tinha razão, mas não dava jeito admiti-lo. A
cobardia em Portugal é isto: os bombeiros morrem e a culpa é quase só
deles. Não é. Algo tem de ser feito para travar esta espiral de
empobrecimento natural. O território fica para além da nossa louca
geração e destes governantes que, na prática, são apenas instrumentos
governados à distância por líderes de negócios de uma economia
devastadora.

http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=3582933&opiniao=Daniel%20Deusdado

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