domingo, 9 de fevereiro de 2014

Floresta está sob a ameaça das pragas, do calor e da incúria


MANUEL CARVALHO 09/02/2014 - 08:04
A devastação dos incêndios das duas últimas décadas e o aumento dos ataques de pragas e doenças podem ser apenas um prenúncio dos perigos que ameaçam a floresta. O aumento do calor é, a prazo, o risco maior. Mas no imediato o que mais compromete a sustentabilidade dos espaços florestais é o abandono e a falta de gestão.

Um País Sustentável
Os povoamentos florestais portugueses estão a ser devastados pelos incêndios. São alvo de ataques de doenças que os debilitam. Enfrentam o perigo do aquecimento global que pode erradicar a floresta do sul do país e alterar por completo a fisionomia da que poderá subsistir no Norte. Mas apesar de ambientalistas, silvicultores, empresários ou as autoridades terem presentes estes riscos para o futuro próximo, o que mais os preocupa é um factor humano de alguma forma controlável: a ausência de gestão.

Depois de 30 anos de investimentos em novos povoamentos, depois de uma Lei de Bases e de dezenas de leis e decretos-lei, a floresta portuguesa está, regra geral, mal gerida ou simplesmente abandonada. E é esse estado que mais ameaça a sua sustentabilidade e a da cadeia económica que vale 2.3% do Produto Interno Bruto e 11,5% do total das exportações nacionais. Sem gestão, o risco dos incêndios aumenta, as doenças e pragas instalam-se e desenvolvem-se mais rapidamente e a vulnerabilidade face ao aquecimento global agrava-se.

“Se formos capazes de ter uma silvicultura mais eficiente, uma grande parte dos problemas de sustentabilidade com os quais nos confrontamos ou seriam minimizados ou nem sequer existiriam”, reconhece João Soveral, vice-presidente do Instituto para a Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Eugénio Sequeira, um dos maiores especialistas em ciência dos solos do país e membro das direcção da Liga para a Protecção da Natureza concorda e cita em abono da sua opinião o exemplo dos eucaliptais geridos pelas empresas de celulose e papel, uns cerca de 200 mil hectares (um quarto da área ocupada pela espécie), “que não ardem ou ardem de copa”. Ou seja, que são capazes de resistir aos incêndios e de evitar os seus danos ao nível do solo.

Há décadas que o problema da gestão está no centro dos debates sobre a sustentabilidade da floresta. Em geral, os especialistas apontam a estrutura fundiária como o maior dos problemas que o sector enfrenta. Dos 3.15 milhões de hectares ocupados pelos espaços florestais (37% do território português), cerca de 98,5% estão nas mãos de entidades privadas. E neste imenso espaço, a maioria da área florestal (89% do total) pertence a proprietários florestais individuais.

Serão ao todo uns 400 mil donos da floresta e estudos revelam que um quarto desses proprietários vive longe das propriedades que, na maior parte das vezes, herdaram e que, muitas vezes, deixaram ao abandono. No Norte e no Centro a maior parte dessas propriedades ocupa um hectare ou menos. Não há um cadastro capaz de dar uma visão de conjunto desta enorme fatia do território nacional. Cálculos não oficiais admitem que 20% da superfície do país não tenha dono identificável.

Nesta paisagem marcada pelo esquecimento, operações como a limpeza dos matas, os desbastes que garantem o vigor das árvores, o combate a pragas ou a criação de aceiros, de estradas de acesso ou de linhas de água para travar o avanço dos fogos não teve muito cabimento. A zona do pinhal do Centro e do Norte do país foi a principal vítima deste abandono. Se em 1963 o pinhal dominava sem contestação a floresta nacional, ocupando mais de 1,2 milhões de hectares, em 1995 essa área reduzira-se já para 978 mil hectares e quinze anos mais tarde, em 2010, ocupava apenas 714 mil hectares – atrás do eucalipto e do sobreiro.



Os incêndios devastaram amplas zonas de pinheiro-bravo e os ataques da doença da murchidão dos pinheiros, causada pelo nemátodo, contribuíram para a redução da espécie. Depois de 1986 os investimentos no pinhal ascenderam a 750 milhões de euros, mas nem isso obstou a que o volume de madeira em pé tenha recuado 15%. A fileira indústria do pinho, que em 2012 exportou 1475 milhões de euros (3.3% do total das exportações), confronta-se hoje com um problema de abastecimento de matérias-primas.

Menos desastroso foi o desempenho do sobreiro e do eucaliptal. A adaptação do sobro a zonas secas do sul, onde poucas espécies podem competir, e a procura de indústria da cortiça fizeram o montado de sobro estabilizar a sua área e tornar-se a segunda espécie da floresta nacional. Mas na evolução estrutural da floresta nacional dos últimos anos a espécie vitoriosa foi sem dúvida o eucalipto. Há 50 anos, a área ocupada pelo eucaliptal rondava os 50 mil hectares; em 1995, o eucalipto era já a segunda espécie florestal do país, com uma área ocupada de 717 mil hectares; e de acordo com os dados preliminares do último Inventário Florestal Nacional, com data de 2010, o eucalipto tinha subido à categoria de espécie florestal dominante, ocupando uma área de 811 mil hectares.

O factor económico
Esta expansão justifica-se em primeiro lugar pelo lucro potencial de cada uma das espécies. “A dinâmica da ocupação florestal foi sempre determinada pela rentabilidade. O que a determina é o interesse económico e não as políticas do Estado”, aponta João Soveral. Mesmo obtendo apoios inferiores aos concedidos pelo Estado e pela União Europeia às outras espécies, mesmo tendo um quadro regulatório menos favorável, o eucalipto expandiu-se porque é a árvore que melhor remunera os seus proprietários. Enquanto uma plantação de pinho começa a dar resultados palpáveis ao fim de 30 ou 35 anos (a não ser na produção de postes simples, que requerem apenas dez anos de crescimento), numa zona onde chova 800 milímetros por ano um hectare de eucalipto produz madeira capaz de render quatro mil euros.

Mas nem aqui se pode dizer que há uma gestão eficiente – além do citado exemplo das empresas de celulose. “A maior parte dos eucaliptais nacionais não produz mais do que cinco metros cúbicos por hectare de material lenhoso, quando com uma gestão eficiente se consegue obter 15 a 25 metros cúbicos”, explica Eugénio Sequeira. Nas contas deste especialista, “se houvesse mais uns 300 mil hectares de eucaliptais bem geridos, o país seria capaz de produzir todas as necessidades de matéria-prima da indústria”.

Recorde-se que a subfileira da pasta e do papel é a que mais contribui para a economia nacional, com as suas exportações a subirem acima dos 2000 milhões de euros em 2012. Mas para atingir este desempenho, e apesar do imenso espaço dos eucaliptais nacionais, as empresas têm de importar todos os anos cerca de 20% das suas necessidades de material lenhoso. A procura de eucalipto mantém-se, por isso, alta - após a mudança da legislação que autoriza ou aprova plantações ou replantações (Decreto-Lei 96/2013), no final do ano passado, 92% dos projectos apresentados tinham por base o eucalipto.

Para responder aos graves problemas da falta de gestão, o Estado lançou na segunda metade da década passada uma densa malha de legislação. Nasceram os planos regionais de ordenamento (PROF), as Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), que funcionam como condomínios de pequenos proprietários sob a égide de uma gestão comum, e os planos de gestão florestal (PGF). No entanto, todo este esforço legislativo redundou num fracasso. As metas dos PROF para as áreas ocupadas pelas diferentes espécies em cada região do país foram suspensas e das 162 ZIF aprovadas “só uma é que funciona”, diz Eugénio Sequeira. Como reconhece João Soveral, “há questões pré-existentes”, como o minifúndio ou a desertificação das zonas rurais, que podem comprometer as intenções da política florestal.

Com muitas leis e pouca gestão, os povoamentos florestais nacionais revelam na sua ampla maioria níveis de rendimento baixos ou muito baixos. E este problema afecta não só a sustentabilidade de uma fileira industrial como ameaça a sua própria sobrevivência a prazo. Em termos internacionais, as exigências de uma gestão sustentável obrigam à certificação florestal e se actualmente há 445 mil hectares de povoamentos certificados, o actual estado da floresta dificulta o crescimento destas áreas.

Da mesma forma, o desleixo ou abandono coloca centenas de milhares de hectares de espaços florestais em risco de destruição a prazo. “Só garantindo a sustentabilidade económica das florestas será possível a sua protecção”, reconhece o ICNF no documento “Preparar as Florestas para as Alterações Climáticas”. Mas ainda antes de ter de enfrentar as ameaças do aquecimento global, a floresta tem de encarar no imediato o perigo do fogo, das doenças e das pragas.

O inimigo número um
O drama dos incêndios florestais começou a ganhar peso na opinião pública e nas preocupações dos seus agentes depois de 1980. Desde então até este ano arderam, em média, 108 mil hectares de povoamentos por ano. Na década que vai de 2000 a 2010, o fogo destruiu 1.633.016 hectares de povoamentos e matos, tendo–se verificado que as mesmas zonas foram devastadas pelos incêndios mais do que uma vez até ao ponto de perderem a sua capacidade de regeneração natural .

Numa outra frente das preocupações, o ICNF aprovou recentemente um Programa Operacional de Sanidade Florestal para o horizonte 2014/2020, no qual elenca não só os perigos que os povoamentos enfrentam como as estratégicas para os combater. Doenças que atacam as árvores sempre houve, mas em anos recentes as autoridades começaram a detectar um aumento da sua incidência, que João Soveral atribui “à intensificação da circulação de produtos florestais provocada pela globalização da economia”.

Foi neste contexto que o nemátodo entrou em Portugal, provavelmente pelo Porto de Setúbal, e se estendeu a várias zonas do país. E é neste contexto que, nos anos recentes, surgiram novas focos que ameaçam a sustentabilidade dos eucaliptais, do montado de sobro e azinho e até das jovens plantações de pinheiro manso, que à custa da valorização comercial do pinhão registou um crescimento na sua área de 54% entre 1995 e 2010.

Ainda que entre o inventário florestal nacional de 1995 e de 2005 (ainda não há dados qualitativos disponíveis do inventário de 2010) se tenha registado uma ligeira melhoria do estado de vitalidade dos principais povoamentos, actualmente subsistem poucas dúvidas entre os especialistas de que as ameaças são mais graves do que há uma década. O ICNF promete aumentar a investigação científica sobre os agentes que ameaçam a floresta e preparou inclusivamente planos de contingência para cenários mais graves. Mas todas estas operações apenas poderão mitigar os efeitos de uma realidade preocupante: a de que a floresta portuguesa começa a enfrentar os desafios do aquecimento global numa situação precária, seja do ponto de vista da sanidade, seja da gestão eficiente e protectora.

Os dados são preocupantes para qualquer parte do planeta, mas são-no particularmente para Portugal e para a sua floresta, como reconhece o Painel Intergovernamental de 2007 para as alterações climáticas. O clima nacional foi evoluindo ao longo do século XX. Entre1910 e 1945 o tempo aqueceu, depois, entre 1946 e1975, arrefeceu e desde então voltou a aquecer de uma forma acentuada.

O número de “dias de Verão” e de “noites tropicais” aumentou, as ondas de calor tornaram-se mais frequentes, prenunciando um futuro, lá para o final do século XXI, que em que a temperatura máxima no estio junto à costa poderá subir três graus e no interior sete. O aumento do calor poderá aumentar não só potencial destruidor dos grandes incêndios como exporá a floresta ainda mais aos riscos das doenças e das pragas e, em casos extremos, tornará a sua existência impossível nas regiões a Sul do Tejo.

Risco de desertificação
No último meio século, as áreas do território susceptíveis à desertificação cresceram de 36% para 58%. O aquecimento global tenderá a agravar essa tendência nas zonas do país onde já hoje se registam baixos índices de pluviosidade, ao mesmo tempo que o Norte, onde a temperatura média poderá subir mais de 0.5 graus por década até ao final do século, evoluirá para o padrão climático que hoje se verifica no sul do país. Neste quadro, os documentos oficiais que se têm dedicado a reflectir sobre este tema apontam para “a substituição nas regiões setentrionais dos pinhais, eucaliptais e carvalhais por espécies esclerófitas como o sobreiro e a azinheira e a redução, no Sul, das áreas hoje ocupadas por floresta (nomeadamente os montados), que serão substituídos por matos”.

Ainda que estes dados sejam susceptíveis de discussão entre a comunidade científica, restam poucas dúvidas de que a sustentabilidade das florestas nacionais se encontra numa encruzilhada. Depois de mais de um século de recuperação, o coberto florestal, o mais importante recurso natural renovável do país, é alvo de ameaças que exigem respostas difíceis. A gestão, a escolha de espécies mais adaptáveis à evolução expectável do clima, a capacidade de se evitar o drama dos incêndios ou a devastação das doenças e pragas são questões cruciais.

Em causa está não apenas uma fileira industrial de crucial importância para o país como um activo natural cujo sequestro biológico de carbono “tem permitido que Portugal tenha ficado abaixo dos limites de emissão de gases com efeito de estufa”, previsto no Protocolo de Quioto, como escreve João Santos Pereira no seu livro “O Futuro da Floresta em Portugal”, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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