MANUEL CARVALHO 15/03/2014 - 12:19
Práticas da protecção integrada são obrigatórias desde Janeiro na agricultura, o que limita o uso de pesticidas e herbicidas a situações extremas. Boas notícias para o ambiente e para a saúde humana
há alguns sistemas de agricultura, como a viticultura, nos quais o uso de químicos é elevado DANIEL ROCHA (ARQUIVO)
O tempo das grandes pulverizações de pesticidas com recurso a aviões entrou definitivamente no capítulo da memória. Em Portugal pelo menos. Por força de legislação europeia que remonta a 2009, os agricultores nacionais foram obrigados a adoptar práticas de protecção integrada nas suas explorações a partir do dia 1 de Janeiro de 2014. Ou seja, só poderão aplicar pesticidas químicos quando estiver em causa um comprovado “prejuízo económico” resultante do ataque de insectos, fungos ou ácaros.
Depois de duas décadas de evolução nas práticas agrícolas em favor de uma maior sustentabilidade, esta nova etapa é uma boa notícia para o ambiente e para os consumidores. Os agricultores têm pela frente novos desafios, mas nada que preocupe as autoridades. “Temos cada vez mais respostas tecnológicas capazes de superar as restrições no uso de fitofármacos”, diz Francisco Gomes da Silva, secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural.
Há dois anos que a Direcção Geral de Alimentação e Veterinária, DGAV, preparava as mudanças estreadas no princípio do ano. Um grupo de trabalho tratou de definir um programa de acção, com medidas de formação e de acompanhamento, com iniciativas de prevenção, com a qualificação de profissionais capazes de saber quando e como aplicar pesticidas ou herbicidas, com a criação de uma rede de vendedores autorizados destes produtos. Pelo meio, centenas de marcas de fitofármacos mais perigosos foram retirados do mercado. “Fizemos acções um pouco por todo o país e a mensagem tem passado”, diz Maria Teresa Villa de Brito, directora-geral da Alimentação e Veterinária. Com mais dificuldades junto da população agrícola e com menos índice de formação profissional (22% não têm qualquer nível de instrução), mas com sucesso garantido junto da nova vaga de jovens que chegaram à agricultura.
À partida, Portugal não apresentava um índice de utilização de pesticidas acima dos valores médios da União Europeia. “Nós não tínhamos propriamente um problema antes da aplicação desta vaga de legislação europeia”, confirma Maria Teresa Villa de Brito. Mas, não havendo notícia de fortes índices de contaminação química de solos ou de cursos de água, há alguns sistemas de agricultura nos quais o uso de químicos é elevado. Na viticultura, por exemplo. Ou nas áreas de milho de regadio, nas quais a combinação entre o calor e a humidade faz aumentar o perigo de fungos e de bactérias e a necessidade do combate químico. Ou ainda na ausência de invernos rigorosos, que permitem a desinfecção dos solos. “Mas não é verdade que tenhamos problemas sanitários superiores aos europeus”, garante Francisco Gomes da Silva. Das 865 amostras de produtos vegetais fiscalizadas em 2011 para verificação do nível de resíduos de fitofármacos, apenas 2.3% apresentavam valores acima dos prescritos na lei.
Transição lenta e natural
Essa condição permitiu que a transição do uso livre de pesticidas para o sistema condicionado da protecção integrada se fizesse sem dramas. Pelo menos ao nível da agricultura profissional, ou da grande agricultura, das zonas agrárias mais desenvolvidas. Junto dos pequenos agricultores das zonas mais remotas, o conceito de protecção integrada continua a ser uma realidade distante. Aí, o hábito de décadas que consiste em combater os problemas nas culturas com recurso aos químicos limita a adopção da protecção integrada. “São conceitos vagos para muitos agricultores, por vezes eles não têm consciência”, admite Cláudia Gonçalves, técnica da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) responsável pelo acompanhamento da área do Ambiente, que inclui a promoção de Modos de Produção Sustentável. Em culturas como a da vinha, o uso de enxofre (o fungicida de longe mais utilizado na agricultura portuguesas) repete-se de geração em geração, e não é de um momento para outro que a noção de prevenção ou a definição de um limiar de perdas “economicamente inaceitáveis” entra nesta equação.
Na maior parte dos casos, porém, a transição fez-se de forma lenta e natural. A reforma da Política Agrícola Comum europeia de 1992 começou a equacionar as primeiras fórmulas de estímulo da protecção e produção integrada, criando as “medidas agro-ambientais” baseadas em práticas amigas da extensificação das culturas e na redução de uso de produtos químicos. Aos poucos, os valores de uma prática agrícola mais amiga do ambiente foram ganhando raízes. “Após as medidas agro-ambientais os agricultores começaram a adoptar voluntariamente a protecção integrada”, diz Cláudia Gonçalves. Nos últimos anos, as autoridades registaram um recuo nítido no consumo de fitofármacos em Portugal, que passaram de um total de 17 mil toneladas em 2007 para cerca de 14 mil toneladas em 2011. Esse valor deverá reduzir-se já este ano.
Uma empresa agrícola como a Sogrape, que produz vinho no Douro, no Alentejo, na região do Vinho Verde e no Dão é um exemplo dessa mudança. Nos seus extensos vinhedos não só se adoptaram as práticas da protecção integrada como da produção integrada, “o que implica um cuidado especial em todas as operações de produção, desde o uso do solo, da água, etc.”, diz António Graça, responsável pela área de Investigação e Desenvolvimento da Sogrape e director da Advid, uma associação profissional que há décadas promove a protecção integrada no vale do Douro. Esta opção, para lá da sua valia ambiental, justifica-se também por uma razão de natureza económica. “O custo dos fitofármacos é elevado e o seu uso deve ser feito apenas em momentos especiais”, quando a severidade dos ataques põe em causa a viabilidade económica de uma colheita, diz António Graça.
Lógica de prevenção
Deixando os pesticidas para operações de último recurso, os produtores ficam mais dependentes de operações de monitorização da evolução da população de agentes danosos e do seu controlo. O Plano de Acção da DGAV prevê várias destas acções para evitar a necessidade do último recurso – o ataque fitofármaco. “É fundamental desenvolvermos uma lógica de controlo, de prevenção”, diz Maria Teresa Villa de Brito. No Douro, a ADVID tem por exemplo uma rede de captura de insectos que causam danos nas videiras que lhe permite estabelecer a dimensão da sua população. Cláudia Gonçalves dá conta de outras operações já usadas pelos agricultores em Portugal: largada de auxiliares (insectos criados em biofábricas que são inimigos naturais dos infestantes), lançamento de hormonas que provocam confusão sexual e, no caso das ervas daninhas, a solarização, que consiste na cobertura do solo com um plástico preto para destruir fundos e nemátodos. “Todos os anos aprendemos coisas novas”, diz a propósito António Graça.
Apesar de todas estas técnicas, há momentos do ano em que a coincidência de períodos de calor com altos índices de humidade torna o recurso aos fitofármacos inevitável. E a redução do número de produtos disponíveis no mercado (dos 907 existentes em 2012, resistiam no ano passado apenas 220) pode trazer problemas para Portugal. “Na Europa há condições climáticas distintas, os problemas fitossanitários entre nós são muitas vezes específicos. Isso pode significar que as mudanças de regras na Europa possam ter impacte real nos agricultores portugueses”, diz Francisco Gomes da Silva. Alguns dos produtos banidos podem ser irrelevantes na Holanda, por exemplo, mas importantes para atacar pragas em Portugal.
“Somos muito pequenos, e a nossa dimensão de mercado não instiga as grandes empresas a desenvolver substâncias activas específicas para os nossos problemas”, diz Francisco Gomes da Silva. O secretário de Estado, que tem uma profunda ligação à produção, recorda o caso de uma larva que atacava a pele da batata para a qual não havia antídoto em Portugal. “Lá conseguimos uma resposta, mas a dúvida é se pode haver uma situação em que as respostas cheguem tarde de mais”, acrescenta. A directora geral da Alimentação e Veterinária lembra que, se houver necessidade comprovada, é possível pedir a inclusão de um determinado fitofármaco na lista oficial aprovada, após consulta e autorização da Comissão Europeia.
Internacionalmente há mais de meio século que se discutem os danos dos pesticidas no solo, nos lençóis freáticos, no ar ou na contaminação de tecidos de espécies vegetais e animais. Em 1962 a obra da bióloga Rachel Carson, “Primavera Silenciosa”, alertava já para os danos do DDT no meio-ambiente. Mas só depois dos anos 1990 é que se começou a perceber toda a extensão dos perigos dos fitofármacos. A sua resistência ao tempo (entre 22 e 30 anos no caso do DDT), a sua capacidade de viajar para zonas muito distantes do lugar de aplicação (foram descobertos vestígios de pesticidas na fauna marinha do Pólo Norte), o seu poder de destruição dos ecossistemas, como aconteceu nas ilhas de Guadalupe e de Martinica após décadas de aplicação intensiva de químicos na cultura da banana levaram os governos dos Estados Unidos e da União Europeia (e de outros países desenvolvidos) a adoptar medidas restritivas ao seu uso. A obrigatoriedade de recurso à protecção integrada é mais um passo nesse caminho.
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