ANA RUTE SILVA 03/02/2014 - 07:48
Pode uma empresa pública estar para fechar desde o ano 2000? Pode. De polémica em polémica, o Eeecutivo incluiu, pela primeira vez, o encaixe de 40 milhões de euros este ano com a concessão da Silopor, que nunca assumiu os juros de uma avultada dívida herdada da antiga EPAC. Nos terminais do Beato e da Trafaria, já se aprendeu a viver com a palavra “liquidação”.
Os 105 trabalhadores habituaram-se à palavra "liquidação" DANIEL ROCHA
Manuel Veiga Lopes atende o telefone da recepção. A Cerealis, a empresa portuguesa mais conhecida pela marca de massas Nacional, precisa de trigo com urgência para não entrar em ruptura. A fábrica está à espera, as linhas de produção aguardam. E, na última fase desta complexa cadeia, há um consumidor habituado a estender a mão na prateleira e a ter sempre disponíveis produtos tão essenciais como a massa.
O engenheiro responsável pelo terminal da Silopor no Beato, em Lisboa, quer acelerar os trabalhos e carregar os camiões que abastecem a Cerealis, que está ali bem perto das instalações da empresa pública de descarregamento e armazenamento de cereais. No rio Tejo, um navio veio de França com quatro mil toneladas de trigo a granel, usado para a alimentação humana.
Não é preciso muito mais para perceber o que é, e o que faz, a Silopor, prestes a ser concessionada à ETE, Empresa de Tráfego e Estiva, depois de anos de sucessivos avanços e recuos: 50% dos cereais que se consomem em Portugal (alimentação humana e animal) passam pelos silos da Silopor, instalados nos terminais portuários do Beato e da Trafaria, e em Vale Figueira. “Esta actividade é essencial ao abastecimento do país em cereais e oleaginosas. Portugal importa 80% das suas necessidades e a quase totalidade chega por via marítima”, explica Abel Vinagre, presidente da comissão liquidatária que gere a empresa pública desde 2000.
A Silopor nasceu rodeada de problemas. Foi criada em 1986 para travar o monopólio do abastecimento de cereais detido pela EPAC (Empresa Pública de Abastecimento de Cereais), que desde a sua fundação, em 1976, controlava todo o mercado, situação incompatível com a legislação comunitária. Assim que deu à luz, pela mão do então primeiro-ministro Cavaco Silva, foi travada pela Assembleia da República (maioria parlamentar de esquerda), que suspendeu a lei que definia a sua criação. Cavaco pediu uma fiscalização de constitucionalidade desta decisão ao Tribunal Constitucional, mas sem sucesso.
O parto acabou por acontecer, mas veio com problemas extras: a Silopor devia ter pago à EPAC pelos activos que passou a gerir (os silos, por exemplo) mas nunca teve recursos financeiros. Os anos passaram e, com os juros que a EPAC começou a debitar à Silopor, criou-se uma dívida que chegou aos 163 milhões de euros (à data de 2001), como recorda uma auditoria feita em 2005 pelo Tribunal de Contas. O Governo socialista de António Guterres tentou auxiliar a empresa pública e conceder-lhe um aval de 149,6 milhões de euros, além de condições especiais de financiamento, mas a Comissão Europeia considerou a medida ilegal por violar as regras da concorrência. Sem conseguir desatar o nó, o Estado avança para a dissolução da Silopor e para a concessão a privados dos silos de Leixões, Trafaria e Beato.
Mas há um “karma” que parece não abandonar a empresa estatal. Os concursos públicos para a cedência destas infra-estruturas foram sempre contestados, envoltos em polémicas e disputados nos tribunais. Os silos no porto de Leixões foram os primeiros a serem concessionados (à Sogestão, do grupo Champalidaud), mas resta colocar um ponto final na adjudicação dos terminais do Beato, Trafaria e Vale Figueira à ETE, que venceu o concurso em 2011. Além disso, só este ano é que o Governo assinou o despacho que faltava para avançar com o negócio, que vai render 40 milhões de euros aos cofres do Estado em 2014 e, ao longo dos 25 anos de concessão, um total de 168 milhões de euros. A Autoridade da Concorrência e o Tribunal de Contas ainda terão uma palavra a dizer: quem ficar com os silos de armazenamento de cereais ganha 80% do mercado em Lisboa. E o terminal da Trafaria é dos poucos no país com capacidade para descarregar cereais de navios de grande dimensão. A Silopor é, por isso, um negócio apetecível.
Abel Vinagre garante que a enorme dívida à Direcção-Geral do Tesouro tem sido abatida na última década, a um ritmo de três a quatro milhões por ano. Mas os juros cobrados pela EPAC nunca foram reconhecidos pela Silopor, nem foram espelhados nas suas contas “por se entender que não estavam de acordo com as propostas da comissão constituída ao abrigo do n.º 9 do art.º 2 da lei 376/88”, lê-se no documento de certificação legal das contas incluído no relatório financeiro de 2012.
Em 2010, o saldo devedor da Silopor nos registos da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças (citados pelo relatório da empresa desse ano) era de 45,5 milhões de euros, 21 milhões dos quais assumidos pela Silopor como dívida. No ano seguinte, o valor foi reduzido para 41,4 milhões. Mas em 2012 o relatório e contas referia que, à data, a Direcção-Geral do Tesouro reportava uma dívida total de 162.339.967 euros. A Silopor assume apenas 13 milhões de euros e o presidente da comissão liquidatária avança que o valor actual, de 2013, é de nove milhões de euros. O PÚBLICO contactou o Ministério das Finanças para saber qual é, afinal, o entendimento do Governo sobre a dívida da empresa pública à EPAC e quem a assume, mas não obteve esclarecimentos em tempo útil. Também pediu esclarecimentos, sem sucesso, ao Ministério da Economia sobre os motivos do atraso na concessão.
Com a liquidação de perto
Enquanto isso, os 105 trabalhadores – 75 dos quais no quadro – foram-se habituando à palavra “liquidação”. “Nos primeiros anos tínhamos algum stress e expectativas, mas a partir de certa altura deixou de ser importante. Já encaramos com naturalidade”, conta Veiga Lopes, 62 anos, que mexe em cereais desde que tirou o curso de engenharia agronómica. Apesar de a empresa estar nesta situação há 14 anos, o maior impacto sente-se no contacto com os fornecedores. “Temos de explicar sempre que estamos em liquidação mas pagamos as contas. E já houve quem não nos quisesse vender determinada peça de que precisávamos”, revela.
No Beato, sente-se o frio do rio. Ouve-se o som das máquinas a aspirar o trigo do navio Karl Jacob K, 90 metros de comprimento, que demorou quatro dias a chegar a Lisboa, vindo de França. Nos porões, lá estão as quatro mil toneladas de trigo. O dia está tranquilo. Mas, por vezes, há fila de espera no rio. “Nessas alturas, os navio respeitam rigorosamente a hora de chegada” explica Veiga Lopes.
A máquina de descarga tem um gigantesco tubo que suga o trigo a grande velocidade (600 toneladas por hora). No comando está Albino. Com 30 anos de experiência, sabe onde colocar o tubo de forma a não afectar a estabilidade do navio. “Tem de se respeitar o navio”, sentencia o responsável pelo terminal. Os cereais são pesados antes de serem armazenados nos gigantescos cilindros de betão. Seguem por tapetes rolantes, de borracha, que não são visíveis, estão escondidos em estruturas metálicas que ligam a máquina de descarga às células de armazenamento. O cereal é “despejado” de cima para baixo. Cada um no seu devido lugar, para um cliente específico. A Silopor trabalha para os importadores de cereais que, por sua vez, vendem o produto à indústria. O maior cliente é a Louis Dreyfus, um gigante que fornece matérias-primas suficientes para alimentar e vestir mais de 500 milhões de pessoas em todo o mundo e que produz e transporta cerca de 70 milhões de toneladas de produtos anualmente.
No porão do barco, atracado no terminal da Silopor, está trigo no valor de 92 mil euros. Um tesouro apetecível, controlado desde a chegada à saída com pesagens constantes.
“Todos comemos daqui. O pão que se come de Coimbra para baixo [até ao Algarve] vem daqui”, recorda Veiga Lopes.
Na outra margem do Tejo, os silos da Trafaria impõem-se na paisagem, instalados em 12 hectares de terreno. Destoam da pitoresca localidade piscatória que desde sempre contestou o cimento esmagador, o “mamarracho”, que nasceu à sua porta, o pó que por mais aspiradores que haja garantem sentir. “A população nunca aceitou que viessem colocar um monstro na sua bela praia”, admite Carlo Belo, director do terminal.
A dimensão do terminal de descarga não se compara à do Beato. Nem a qualquer outra estrutura semelhante no país. Aqui passam navios com um comprimento que pode chegar aos 260 metros e há, não um, mas quatro postos de acostagem, que possibilitam, inclusive, a carga de cereais entre navios (transhipment). As três máquinas de descarga (que sugam o cereal dos porões) têm uma potência equivalente a dois mil aspiradores domésticos (ver infografia).
Carlos Belo conhece cada canto de olhos fechados. Mas diz, com lucidez, que de nada vale ter infra-estruturas de topo se o custo do serviço prestado não for competitivo. O “fantasma” da concessão, que paira há demasiados anos sobre a empresa pública, é um tema recorrente nas conversas que tem com os trabalhadores. “Há que avançar. Temos de fazer diariamente o que tem de ser feito e da melhor forma possível. De maneira a que o rendimento seja o máximo. Seja o patrão Estado ou não”, diz. E continua: “Existe sempre a expectativa de saber como vai ser. É legítimo. O que transmito às pessoas é que, aqui, acabam por ter a valorização máxima porque conseguem fazer qualquer coisa dentro da instalação. E quem vier vai sempre precisar de gente conhecedora.”
A chuva miudinha parece cair na horizontal. A bordo do gigante navio carregado de 60 mil toneladas de milho que chegou da Ucrânia – o celeiro da Europa –, um trabalhador comanda a máquina de descarga, posicionando o gigante tubo no porão para aspirar o cereal. Os ritmos de descarga são contratualizados com o cliente. Podem chegar às 21 mil toneladas por dia, mas em dias de chuva os trabalhos param. A estiva (contratualizada fora) é uma tarefa dura, árdua e áspera.“Nós aqui prometemos trabalho e inferno. Com o esforço de todos, tornamos isto um pouco mais de céu”, diz Carlos Belo.
Depois de retirado do navio e armazenado nas células (há 114 no total, com uma capacidade para guardar 200 mil toneladas), o cereal está pronto a ser recolhido. Por dia, passam pela Trafaria entre 220 e 230 camiões que transportam, em média, seis mil toneladas. “A expedição rodoviária é uma operação importante. É assim que se alimenta o país”, explica o director do terminal. Há 13 pontos de entrega de cereais: cada um é controlado através de câmaras de videovigilância. A quantidade de produto a expedir é comunicada à entrada. Depois de tudo acertado, o motorista posiciona o camião debaixo de um edifício e o cereal é “despejado”. Três minutos e está pronto para se fazer à estrada.
Junto a uma das áreas de expedição, cheira a ração para animais. O tubo de onde saíram os cereais está coberto de um pó branco e, no chão, vêm-se uns quantos bagos de milho. Das oito da manhã à meia-noite, a Trafaria não pára.
A demora no processo de liquidação não travou a actividade dos silos portuários, empresa que em 2013 terá mantido os lucros líquidos nos 1.602.723 euros (valor de 2012, que caiu cerca de 29% face a 2011). “Ao longo deste período sucederam-se vários governos. Não posso dizer que tenham sido fixados objectivos e uma estratégia imutável, entre o ‘vamos lá dar a volta à empresa e depois privatizamos’ e o ‘vamos privatizar e depois logo se vê’. As decisões foram mudando”, conta Abel Vinagre, sentado numa ampla sala de reuniões com vista para o Tejo, no terminal do Beato. A novela terminará este ano?
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