Público, 2012.03.25
A meta da auto-suficiência alimentar é improvável e a palavra de ordem
deve ser o aumento das exportações. De quê? De produtos onde o país é
competitivo, como os da floresta, diz Francisco Avillez. Sobre o
futuro, considera que a proposta em aberto para o futuro da PAC é boa,
mas avisa: o nivelamento dos subsídios entre regiões e produtores pode
ser explosivo. PorLurdes Ferreira e Manuel Carvalho
Francisco Avillez, 67 anos, é um dos mais conceituados economistas
agrários do país. Os seus estudos e reflexões sobre as influências da
Política Agrícola Comum (PAC) e os seus efeitos na evolução do mundo
rural português foram determinantes para a formulação das políticas
nacionais nos últimos 25 anos.
O compromisso com a troika levou o Governo a manifestar a necessidade
de reduzir o défice de 2500 milhões/ano na balança alimentar, com a
promessa de que vamos ser auto-suficientes dentro de sete a oito anos.
Como vê estas metas?
Podemos aumentar de forma significativa o que exportamos e em alguns
casos substituir importações. Tenho a maior das dúvidas em relação à
questão da auto-suficiência. Há sectores onde produzimos mais do que
consumimos e exportamos: vinho e concentrado de tomate. Há sectores em
que não estamos muito longe da auto-suficiência e há outros em que
temos um grau de auto-abastecimento muito baixo e que nunca deixará de
ser assim, porque não temos condições para competir nessas áreas. É o
caso dos cereais e das oleaginosas.
Que condições são essas?
Não temos solos, nem clima, nem dimensão nem know-how técnico.
Conseguir uma auto-suficiência ao fim de X anos é uma boa intenção.
Teria preferido que a ministra e o secretário de Estado, que foi meu
aluno, pensassem que o importante é fazer crescer o valor acrescentado
nacional através de um aumento das exportações e redução das
importações. Porque é esse o objectivo, em termos gerais.
E é possível chegarmos a um saldo nulo entre as nossas importações e
exportações?
Tenho dúvidas. Neste momento, temos um grau de auto- -aprovisionamento
de 70%, mas temos toda a parte dos cereais, onde muito dificilmente
vamos conseguir. A única maneira de incentivar a produção é apoiar o
investimento e o crescimento da produção em valor.
Está optimista em relação a aumento do valor acrescentado? O último
balanço do INE, relativo a 2011, diz que mais uma vez o sector perdeu
valor. Há a ideia de que os agricultores deixaram de produzir porque
viveram à custa dos subsídios. Pelo retrato que faz, essa visão é um
pouco injusta.
Completamente. Não quer dizer que não houvesse situações dessas. O que
me parece fundamental é que, ao manterem-se apoios para uma
determinada superfície elegível, não tem sentido insistir em fazer lá
trigo ou milho se houver custos de produção acima dos preços do
mercado. Deve-se é desenvolver um conjunto de acções práticas que
contribuam para o combate à erosão, a melhoria da fertilidade dos
solos e da sua estrutura, de maneira a aumentar a retenção de água.
Portanto, um conjunto de aspectos que vão ser bastante importantes
daqui a uns anos se, por razões que se prendem com calamidades
internacionais, tivermos de utilizar os solos que neste momento deixam
de ser utilizados. Devíamos ter um conjunto de recursos de terra,
solo, conhecimentos, capacidades que deveríamos apoiar porque podem
ser extremamente importantes a prazo.
Notou algo de novo neste Governo em relação à agricultura?
Há aqui duas coisas. Uma é o que os produtores sentem em termos de
disponibilidade e interesse. Tivemos ministros disponíveis e com boa
relação com os agricultores, como com o António Serrano. A actual
ministra tem sido um pouco isso. Tem grande capacidade de comunicação
com os agricultores. O problema é ver o que acontece em termos
práticos. Gosto desta ministra - é amiga dos meus filhos, nunca me
tinha passado pela cabeça que seria ministra da Agricultura e
provavelmente a ela também não -, tem um discurso articulado. Mas há
coisas que começam a ser complicadas e que derivam do facto de ter
ficado com aquele ministério.
Disse há pouco que não há dinheiro. Isso é um problema para um
ministério que funciona como uma agência distribuidora de dinheiro?
Em termos do Ministério da Agricultura não é tanto assim. Nos
contactos que tive com outros ministérios, apercebi-me de que há
interesses mais sólidos. No Ministério da Economia, quando foi o caso
dos biocombustíveis, eu não tinha as menores dúvidas de que aquilo
nunca se iria resolver por causa da Galp. Foi um assunto que me
atormentou, e muito. Na parte do Ministério da Agricultura não há esse
género de coisas. Pode haver às vezes umas ideias preconcebidas. Por
exemplo, relativamente a uma questão que eu acho que tem de ser
discutida, que é a possibilidade de muitas áreas irrigáveis mas que
não têm rentabilidade com a produção vegetal normal poderem ser
ocupadas com floresta de crescimento rápido. Isto para alguns sectores
do Ministério da Agricultura é completamente odiado. O que tem de ser
objectivo é produzir aquilo no que somos capazes de competir e
preservar os recursos para se forem necessários mais tarde. Por
exemplo, a Portucel e a Soporcel vão precisar dessas áreas, porque
neste momento estão a importar uma quantidade enorme de madeira do
Brasil. Há todos aqueles condicionantes que são inteiramente justos,
no sentido de evitar que a floresta de crescimento rápido tenha uma
interferência negativa nos recursos hídricos. A certa altura fez-se um
erro enorme - e fez-se porque os preços da pasta eram muito elevados
-, que foi fazer eucaliptais em zonas que eram um disparate em termos
ambientais, mas que também se transformaram num disparate em termos
económicos. Agora mais ninguém voltará a fazer isso. Temos de fazer as
contas com cuidado: se nós precisamos de aumentar as exportações, este
é um sector decisivo.
Nesta discussão, onde é que cabe a sustentação do interior e do mundo
rural português?
De facto, o discurso do mundo rural desapareceu. A maior parte do
nosso mundo rural hoje em dia já depende muito pouco da agricultura e
dependerá ainda menos no futuro. Sempre que acabam as escolas ou os
centros de saúde está-se a contribuir para que haja menos condições
para as pessoas se manterem lá. Isto é se calhar mais decisivo do que
a política agrícola. Não é muito fácil resolver esta questão.
O Governo quer avançar com um cadastro e a entrega de terras
abandonadas. Concorda?
O cadastro é decisivo, nomeadamente nas áreas florestais. Não há
maneira nenhuma de resolver o problema dos fogos sem conhecer um
bocadinho melhor o território. Aproveitar áreas abandonadas,
nomeadamente as que são do Estado, e eu não sei quais são, acho que é
uma boa ideia. Não sei quais são os resultados práticos disso. O
retomar a actividade agrícola, de que toda a gente fala, mostra que
muitas vezes o que existe é uma ideia quase romântica do que é a
agricultura. Depois, há o choque com a realidade. Depois de passarem
lá algum tempo, apercebem-se de que aquilo é muito mais duro, excepto
em sectores específicos - como as plantas ornamentais. Mas isso
significa ocupar áreas muito reduzidas.
Está a falar das terras do Estado ou das terras abandonadas?
As terras abandonadas em princípio são de alguém. O meu problema é
sobre o que se diz que é abandonado. E vamos lá instalar quem, já que
por norma são áreas muito pobres? Este tipo de iniciativas
politicamente são interessantes, mas a grande questão é que não temos
instrumentos para as viabilizar. Produzir em zonas pobres não tem
qualquer racionalidade económica.
Como considera a proposta da Comissão Europeia para a próxima reforma da PAC?
A proposta é globalmente boa para Portugal. Vai haver um modelo de
convergência que vai favorecer aqueles Estados--membros que beneficiam
à partida de apoios menores (entre os quais Portugal), nos chamados
pagamentos directos aos produtores. Há aqui dois grandes objectivos
nesta reforma no que diz respeito aos pagamentos: acabar com o modelo
histórico [que baseia o seu valor na produtividade média de cada
região, sendo que as nacionais estão entre as mais baixas] que está na
base destas diferenças entre Estados-membros. Não faz sentido que um
agricultor da bacia de Paris receba 14 ou 15 vezes mais do que um
alentejano ou do Minho. Agora, a convergência nos pagamentos foi muito
tímida.
Pelas suas contas, quanto é que Portugal vai ganhar?
Para os pagamentos directos nós temos actualmente cerca de 570 milhões
e passaremos a ter pelo menos 610 milhões. Mas ainda há muitas
incertezas no horizonte. O orçamento comunitário ainda nem sequer foi
aprovado. Por outro lado, temos de ter consciência de que o impacte
que isto tem na evolução dos nossos rendimentos não é assim tão
significativo como isso. Nós fizemos um estudo e concluímos que aquilo
que em termos médios se vai beneficiar em termos de pagamentos
directos andará entre os 6% e os 12% até 2019, em termos médios
nacionais. Mas como esses pagamentos representam apenas uma
percentagem do valor acrescentado líquido, o aumento deste valor após
os pagamentos varia entre os 2,5% e os 4,5%. Não é isso que vai
resolver o problema do rendimento das nossas explorações agrícolas.
Outra questão é a convergência nos apoios dentro de cada Estado-membro.
Se há diferenças entre Estados--membros, há diferenças ainda maiores
entre os apoios por hectares a diferentes regiões e nos diferentes
sistemas agrícolas do país. São diferenças enormes.
A Comissão também exige que essas diferenças sejam esbatidas. O que se
pode fazer?
A Comissão é leonina e exige que a convergência dentro de cada
Estado-membro esteja concluída até 2019, enquanto a convergência
europeia seria até 2028. Isto vai criar uma dificuldade enorme sobre a
forma como nós, internamente, fazemos esta distribuição. Quais são os
sectores que vão ser mais penalizados? A agricultura de regadio -
milho, arroz, tomate para indústria, bovinos de leite e bovinos de
carne em produção intensiva. E são os mais penalizados porque são os
que têm apoios maiores. Quem vai ser beneficiado? Sobretudo os
sistemas mais extensivos. A pecuária extensiva, as policulturas, as
culturas permanentes [olival, vinha...]... Mas as culturas
permanentes, que agora têm um valor de pagamento baixo, vão ser
beneficiadas, mas em termos de valor acrescentado isso não significa
nada. Os outros não: actualmente têm ajudas baixas e os pagamentos
representam 40%, 50%, 60% do valor acrescentado e podem ganhar 20% ou
30%. Depois, do ponto de vista regional, as zonas que vão ser
beneficiadas com este processo são o interior e o Alentejo; as que vão
ser penalizadas são o Entre Douro e Minho, a Beira Litoral e o
Ribatejo, porque representam fundamentalmente aqueles tipos de
sistemas agrícolas mais apoiados. Nesta perspectiva, podemos dizer que
a nova política agrícola vai aumentar o rendimento das explorações nas
zonas do interior, e nalguns casos com algum significado. Mas isto vai
ter impactes muito negativos em alguns casos concretos, como no arroz
ou no tomate. E em algumas zonas: a nível de NUT III, fizemos alguns
estudos e concluímos que as médias de pagamentos andam nos mil e tal
euros, quando a média nacional ronda os 170 euros por hectare.
Onde é que isso se verifica? No Ribatejo e no Oeste?
No Entre Douro e Minho. Porquê? Porque em causa estão sistemas de
produção de leite muito eficientes mas com pouca terra associada. E
isso vai levantar questões muito significativas. É uma espécie de
bomba atómica interna. Tem de se encontrar soluções.
Até Agosto do próximo ano, o Governo vai ter de decidir se o envelope
nacional vai ser aplicado num único programa ou se vai haver programas
regionais.
O que acha mais recomendável?
Eu acho muito difícil a regionalização. Nós temos regiões muito
heterogéneas e portanto criávamos dentro de uma zona limitada
situações muito desiguais e relativamente injustas. Há quem defenda
que se deveria dividir o país em duas grandes zonas: norte, centro,
litoral e lezíria do Tejo, e depois tudo o resto. Eu até agora tenho
defendido que é melhor termos uma taxa uniforme nacional, fazer tudo o
que seja possível para garantir que a convergência seja até 2028, e
usar a possibilidade de usar os pagamentos para amenizar as perdas dos
que vão ser mais afectados por esta mudança.
Mas isso é uma forma de conservar o statu quo?
Não, é de amenizar a transição. Esta questão é muito política. Dizer
assim: os agricultores que recebem cinco vezes acima da média têm de
estar na média em quatro anos. Não é fácil. O que estou a discutir é
que vão ter de se encontrar fórmulas para amenizar a transição, mas
essa amenização não pode ser à custa das expectativas de que vão
melhorar a sua situação. Haverá quem diga, "cá está, os produtores
extensivos vão receber mais sem fazerem nada". Isto vai minar a
situação e espero que as organizações de agricultores não caiam neste
tipo de discurso.
http://jornal.publico.pt/pages/section.aspx?id=76924
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