19 Fevereiro, 2014 12:18 | Texto: Samuel Alemão; Fotografia: Ricardo Palma Veiga
A sub-região de Bucelas é pequena, mas a fama da casta branca Arinto garante-lhe um lugar no imaginário dos enófilos. Localizada às portas de Lisboa, vê reconhecida a sua notoriedade no recém-inaugurado museu. Um serviço ao vinho, mas também uma lição de história.
Existir à sombra de um gigante pode ser a menos apelativa das realidades. Os produtores dos vinhos dadenominação de origem de Bucelas, conhecida pela casta branca Arinto, sabem-no bem. De pequena dimensão, a sub-região vitivinícola integrada na região demarcada de Lisboa comemorou um século de existência, há dois anos, com uma produção anual a rondar o meio-milhão de garrafas. Parece muito, mas não é o suficiente para a considerarmos entre os grandes pólos enológicos nacionais. A mais próxima circunscrição vinícola da capital – se exceptuarmos Carcavelos, praticamente reduzida a uma expressão simbólica -, localizada na Área Metropolitana de Lisboa, é um daqueles casos em que a fama é bem superior ao proveito. Todos associam a área Nordeste do concelho de Loures ao vinho Arinto. Mas os que o bebem estão longe de ser muitos.
E, no entanto, apesar dessa pequena dimensão comercial, pode dizer-se que se trata de uma sub-região com um imaginário forte. Para além da casta que lhe dá fama, quase todos ouviram falar das referências de vultos da literatura ao vinho ali produzido, nas suas obras. Eça de Queirós, William Shakespeare, Charles Dickens e Lord Byron. Todos a ele se referiram, com maior ou menor arroubo. Há uma passagem da dramaturgia nascida da pena de Shakespeare, em 1594, na qual um personagem, a dada altura, proclama: “And here, neighbour, here’s a cup of Charneco”- (tradução: “E aqui, vizinho, tens uma caneca de Charneco”). Referia-se ao vinho produzido numa área próxima de Bucelas, conhecida por Charneca e localizada nas imediações da povoação de Vila de Rei. Para além destas referências literárias, existe todo um novelo narrativo em redor da origem da própria casta Arinto.
Mitos e factos
É relativamente consensual que a cultura da vinha naquela região é contemporânea da ocupação romana e, por isso, uma actividade ali praticada há 2200 anos, bem como a existência de algumas semelhanças da casta Arinto com a germânica Riesling – sobretudo após um estágio mais prolongado. Subsistem, porém, divergências sobre a origem e a antiguidade da sua utilização em Bucelas. Uns atribuem-na aos cavaleiros teutónicos que, no seu caminho para as cruzadas na Terra Santa, a terão trazido consigo. Outra versão aponta ao percurso inverso, defendendo a tese do encepamento ter vindo do Oriente Médio pela mão dos cruzados alemães, que por cá passaram de regresso a casa. Teria sido também dessa época o início da plantação da Riesling. Mas existe uma versão que aponta para um começo bem mais tardio da relação de Bucelas com a casta Arinto, dizendo que terá sido o Marquês de Pombal a dar ordens para a importação de bacelos vindos da Alemanha – o que, a ser verdadeiro, dissociaria as referências de Shakespeare à casta, por claro anacronismo.
Tal discrepância de fontes alimenta o imaginário em redor dos vinhos de Bucelas. E ajuda a preencher o painel existente à entrada do novo Museu do Vinho e da Vinha de Bucelas, inaugurado a 26 de Julho. Nele, através de um registo figurativo semelhante ao da banda desenhada, sobrepõem-se todas essas referências, numa fusão da realidade e da mitologia. Sem valorizar umas em detrimento de outras, antes equiparando-as. E logo aqui temos todo um programa. Mais do que um mero repositório cronológico, o museu criado pela Câmara Municipal de Loures nasceu com a ambição de “evocar não só a região de Bucelas, mas também a produção de vinho no sentido mais alargado, pois há tradições que são comuns e transversais a todas as regiões”, como nota Conceição Maciel, responsável pelos núcleos museológicos da autarquia. E isso inclui a “reflexão e a compreensão do vinho também no campo do simbólico e do imaterial”.
Inteligência da exposição
O minimalismo da área expositiva e o valor simbólico das peças expostas afirmam-se mesmo como as principais linhas de força do recém-inaugurado equipamento.Talvez por isso, e apesar de ser um espaço não muito grande e sem um acervo de vulto para mostrar, fica-se com a ideia de esta ser uma casa de onde se sai preenchido de conhecimento. Muito graças à inteligência e concisão com que o espaço foi pensado. Ou seja, com pouco, mostra-se muito. É claro que existem peças expostas, sejam relativas à lavoura, à vindima ou ao trabalho na adega – como é usual neste tipo de museus -, mas apenas em número indispensável. E acompanhadas da informação que as contextualiza. Bom exemplo disso é o painel “Saberes e Fazeres”. Imagens e pequenos textos são acompanhados por artefactos correspondentes a cada um dos momentos abordados: “O homem e a enxada”, “enxertia”, “empa”, “monda”, “sulfatação”, “enxoframento”, “vindima”, “poda” e “tanoaria”. Entre eles, surgem também os ofícios do cesteiro, do ferreiro e do tanoeiro.
Na sala onde existe este painel, os olhos são, no entanto, chamados para outro local. A um canto, mas com aparato suficiente para não passar despercebido, está um lagar de vara, imponente. Construído a partir do remanescente de duas estruturas distintas, com a “vara” a vir de um lugar e as paredes de pedra que constituem o tanque – o lagar propriamente dito - de um outro, serve de modelo evocativo do trabalho de vinificação noutras épocas. Este era um mecanismo relativamente simples e eficaz. O pretendido esmagamento das uvas acontecia pela acção do rodar do fuso, um parafuso em madeira, que fazia com que a vara exercesse a pressão desejada sobre a tampa colocada sobre a fruta. Dessa acção resultava o sumo, que corria pela bica do lagar.
As Linhas de Torres
No piso inferior deste edifício - que já albergou a adega e os armazéns da mais importante e emblemática empresa dos vinhos de Bucelas, a João Camilo Alves, Lda, fundada em 1921, mas cuja actividade começara com outra designação, quatro décadas antes -, os visitantes podem ainda observar uma sala onde estão dois lagares de pedra. Estes sim, funcionaram realmente ali. Mais tarde, em meados do século passado, viram serem construídas ao lado cubas de armazenamento em cimento. Antes de subirem as escadas, as pessoas podem e devem ver o filme de 15 minutos mostrado na sala multiusos. Nele se sintetizam a história e as principais características da sub-região Bucelas e da casta que lhe cunha a personalidade. No conjunto, o piso térreo e o seu acervo formam o centro de exposição permanente. O piso superior é ocupado, sobretudo, pelo núcleo de exposições temporárias, mas também pelo Centro de Documentação Camilo Alves e pela oficina do serviço educativo – o museu dá especial atenção não apenas aos invisuais, mas também às crianças.
O centro de documentação é sobre vinho, claro, mas também sobre as Guerras Peninsulares, o outro nome pelo qual são conhecidas as Invasões Francesas. Na verdade, o museu agora inaugurado integra uma ala, outrora a habitação da família Camilo Alves, onde funciona, desde Março do ano passado, o Centro de Interpretação das Linhas de Torres. Integrado na Plataforma Intermunicipal das Linhas de Torres, que junta seis concelhos onde foram construídas as fortificações, aborda este importante capítulo da história militar. A ligação ao vinho de Bucelas não surge por acaso. Está ancorada nos factos históricos, nos quais o Duque de Wellington, comandante das tropas inglesas, desempenhou um papel central. Foi ele o responsável pela popularização do vinho no seu país, tendo-o oferecido ao rei Jorge III. Daí que a sua imagem tenha destaque no tal painel da entrada. Muito mais pode ser aprendido neste museu, que, pensando bem, apenas espanta por não ter surgido mais cedo.
Museu do Vinho e da Vinha de Bucelas
Rua Dom Afonso Henriques, nº2 e 4 (EN116)
2670 – 637 Bucelas
Tel: 92 448 72 97
Web: www.cm-loures.pt
Email: dc@cm-loures.pt
GPS: 38º 54’ 5.39” N / 9º 7’ 13.11” O
Classificação:
Originalidade (máx. 2): 1,5
Atendimento (máx. 2): 2
Prova de vinhos (máx.4): 2
Venda directa (máx. 4): 2
Arquitectura (máx. 3): 3
Ligação à cultura (máx. 3): 3
Ambiente/ Paisagem (máx. 2): 1,5
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