sábado, 7 de abril de 2012

Há muito mais notícia numa floresta queimada do que em árvores a arder

por OSCAR MASCARENHASHoje
Está aí a começar - ou já começou, e não me dei conta - a época
oficial dos fogos florestais. A ideia de existir uma "época oficial"
para o flagelo que destrói o arvoredo e ameaça populações seria
patusca se não fosse trágica. Imagino sempre que, sendo uma "época
oficial", haja inaugurações, discursos com a imprescindível "na
certeza porém", bênção e formaturas de bombeiros a apresentarem
machadinhos e agulhetas, a esposa do ministro, muito cumprimentada
pelo elegante chapéu e luvas, soltando graciosamente um cocktail
Molotov, preparado em garrafa que teve patriótico espumante português,
contra um pinheiro previamente besuntado de resina para uma chama
rápida - uma espécie de batismo de fogo a imitar os lançamentos de
navios à água. E "época oficial" faz pensar em guardas florestais a
autuar incendiários furtivos - por lançarem fogo na época de defeso...
Passado este cerimonial imaginável, estarão aí os fogos - e os jornais
e televisões a competir com imagens nas notícias de tragédia. É a
corrida ao horrivelmente belo, as fotos e os filmes em disputa
adjetiva do relato do desastre. É, por isso, necessário refletir sobre
como cobrir esses fogos gigantescos.

Já participei em diversos debates com especialistas nesta área e
psicólogos e sociólogos parecem-me convergir num ponto em que os
jornalistas - em especial os repórteres de imagem - mostram grande
renitência em aceitar. Um repórter de imagem, seja ele fotógrafo ou
operador de câmara, é tendencialmente um esteta, deslumbra-se com o
que vê e quer partilhar a captura que fez do instante com o público a
quem entrega o seu trabalho. Quer mostrar um fogo no ponto máximo da
sua feeria, arrisca a vida (porque dele próprio se esquece) para
registar o momento - e anseia por chegar o mais perto possível das
labaredas, num inebriamento de calor que o põe quase em transe. Quem
pode condenar o captor que se deixa ser cativo da captura?
Mas fez jornalismo, verdadeiro jornalismo, esse repórter de imagem?
Essa é a questão. A notícia onde está? No fogo ou nas consequências
dele? O nosso bê-á-bá diz-nos que a notícia se encontra no último
acontecimento, não no primeiro. É isso que costumamos identificar como
a diferença entre a narrativa jornalística e a do conto ou do romance:
este começa com o homem a entrar no automóvel para fazer a viagem;
aquela começa com o homem morto no acidente contra a árvore.
(Jean-Paul Sartre, em A Náusea, garante que até a narrativa de romance
começa pelo fim: quando o autor abre o texto com "Estava uma bela
manhã" já sabe o que vai acontecer anos depois dessa "bela manhã" e
não foi por acaso que escolheu começar por aí - organizou o puzzle da
frente para trás.)
Eis-nos, portanto, perante o duelo entre a estética do momento e o
dever de informar. A imagem que vale por mil palavras, o instantâneo
assombro das labaredas, fala, fala, fala - mas não dá a notícia. Esta
está no arvoredo destruído, no chão calcinado, na vida carbonizada. A
notícia do incêndio não é o fogo - é o carvão.
É exatamente o que ouvi pedirem psicólogos e sociólogos em debates
sobre a cobertura jornalística dos incêndios. E por uma razão
acrescida: o fogo tem algo de feiticeiro - deslumbra e convida. Ao pé
dele, o prazer de ver arder é viciante. Perto de uma lareira,
dificilmente se resiste a lançar mais alguma coisa que avive as brasas
e as converta em chamas.
(Pepe Carvalho, o detetive ficcionado pelo grande Manuel Vázquez
Montalbán, não resistia a lançar para a fogueira os seus velhos
clássicos do marxismo, antecipando o ritual de purificação para
ingressar no sistema velho-liberal de não sei quantos dirigentes
políticos e jornalistas portugueses, outrora verdadeiras vestais do
estalinismo-maoísmo - ai, fogo de apagar memórias...)
Não há estatísticas exatas e indiscutíveis das causas dos incêndios
florestais. Apontam- -se, habitualmente, três: combustões espontâneas
fortuitas em flora ressequida e áreas desleixadas; fogo posto para
compra barata de madeira ardida ou para "desbloquear" loteamentos
urbanísticos; e obra de pirómanos, habitualmente identificados como
doentes.
O que ouvi de psicólogos e sociólogos é que, neste terceiro caso, a
doença pode ser apenas ocasional, uma tentação momentânea, como aquele
adolescente que confessou ter lançado fogo a uma mata ou floresta só
para ver os aviões lançarem água. Estes "doentes", crónicos ou
ocasionais, precisam de ser dissuadidos do crime de que não têm
perfeita consciência, no momento de o praticarem, dizem-me os
psicólogos.
Ora, o fogo só é dissuasor quando lhe sentimos o calor. Quem já esteve
perto de um incêndio de grandes proporções e sente, a centenas de
metros, a pele a querer sair do corpo, já conhece o medo que o fogo
provoca. Mas as notícias dos fogos, por mais que falem nele, não
conseguem fazer-nos sentir o calor.
Por isso, os jornalistas devem ter redobrado escrúpulo na publicação
de imagens de incêndios: por um lado, porque a notícia está no que
ardeu e não no que esteve a arder (felizmente, nos jornais, não temos
de falar em "diretos", mas vamos ter de pensar nisso perante as
possibilidades de multimédia do online); por outro, há que ponderar o
dever de não estimular as práticas incendiárias, se os psicólogos e
sociólogos têm razão nas suas advertências - e não me custa nada a
crer que sim.
Oonline veio trazer mais uma razão de cautela: ao verificar as caixas
de comentários de notícias sobre incêndios, é preocupante ler tiradas
de "pirómanos teóricos", dos quais não sabemos se o fazem por se
acharem muito engraçados ou se são, de facto, doentes mentais. E, se o
forem, a que distância estão de pôr em prática as suas teses e
imaginações nerónicas?
Eis-nos de novo nesta delenda Carthago suscitada pelas caixas de
comentários. Havemos de ficar de braços cruzados? Não deve ser
restringido o acesso a quem, sob o guarda-chuva da liberdade,
propagandeia e incensa a destruição pelo fogo?
No mínimo, o DN deve ter uma estratégia de informação dos fogos, para
cuja reflexão proponho dois pontos: fazer o possível por publicar o
que ardeu e não o que esteve a arder; e, na eventualidade de querer
ilustrar uma notícia de incêndio com uma foto de arquivo, NUNCA
mostrar chamas, mas sim áreas ardidas.
Oque atrás escrevi não se aplica, obviamente, aos atos - uns dirão
tresloucados, outros heroicos - em que alguém se imola pelo fogo num
protesto político ou social. Recentemente, um jovem tibetano, Jamyang
Yeshi, decidiu suicidar-se pelo fogo, em Nova Deli, em protesto pela
presença, na Índia, do Presidente da China, país acusado de usurpar a
soberania do Tibete.
Num caso destes, entendo que é adequado e correto dar a imagem da
imolação pelo fogo e não propriamente do corpo carbonizado. Aqui, a
notícia é o sacrifício que o manifestante escolheu, para dar o
testemunho. Foi o que fizeram monges budistas no centro de Saigão, nos
anos 60, em protesto contra a presença militar norte-americana no
Vietname. Foi o que fez, simetricamente, em janeiro de 1969, o jovem
Jan Pallach, protestando contra a invasão soviética da Checoslováquia
que visou pôr fim à Primavera de Praga.
Um sacrifício tremendo perante o qual me curvo, em respeito - apesar
de todas as dúvidas e discordâncias. Se estivesse por perto,
sentir-me-ia obrigado a tudo fazer para impedir. Não o conseguindo,
como jornalista, não tenho dúvidas: a notícia está ali, no ser vivo em
chamas.
E sonho com o dia em que consigam colocar, nas caixas de comentários
online, um mecanismo que dispare um pano encharcado na fachada
daqueles que se permitiram fazer graçolas alvares sobre o jovem
tibetano.
provedordoleitor@dn.pt
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2406781&seccao=%D3scar%20Mascarenhas&page=-1

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