quinta-feira, 21 de junho de 2012

Formação de preços e construção de equilíbrios na cadeia alimentar *

OPINIÃO


Pedro Pimentel




Pressuposto de base: da mesma forma que existe uma forte
interdependência entre a produção primária e o sector da transformação
agro-alimentar - que em muitos casos se constituem como verdadeiras
fileiras à escala local, regional ou nacional - essa interdependência
é igualmente fundamental no relacionamento entre fornecedores (sejam
eles produtores ou transformadores) e distribuidores.

Sem qualquer hipocrisia ou ironia, o desejo dos fornecedores é,
obviamente, relacionar-se com operadores da distribuição fortes,
competitivos, rentáveis e saudáveis.


São esses os operadores que dão maiores garantias de continuidade de
negócio. São esses operadores que dão maiores garantias de um trabalho
adequado junto dos consumidores.

Apesar disso, os desequilíbrios ao longo da cadeia alimentar são hoje um facto.

São cada vez mais as vozes que se levantam dando conta do elevado
desequilíbrio do poder negocial entre as partes.

Repetem-se cada vez mais as afirmações referindo o forte desequilíbrio
na distribuição de valor.

Importa afirmar que este não é um problema português, ou um problema
ibérico (os contornos da situação em Espanha pouco diferem daquilo que
se vive em Portugal) ou mesmo um problema dos países do Sul da Europa.

Contudo, em alguns países - como é o caso de Portugal - este problema
assume dimensão mais relevante, não apenas pela forte concentração no
seio da distribuição, mas essencialmente em razão de um conjunto de
práticas e comportamentos que afectam fortemente os equilíbrios
daquelas relações.

Não valerá a pena perder demasiado tempo a dissecar o conjunto de
factores que contribuiu para que se chegasse à situação actual, como
será também perda de tempo discutir se a situação actual resulta do
aproveitamento excessivo do poder que os distribuidores efectivamente
detêm ou se será também o resultado de algum comodismo e facilitismo
com que, a dada altura, o tecido de fornecedores encarou o reforço de
poder dos principais operadores da moderna distribuição.

Mais do que descobrir se quem nasceu primeiro foi a galinha ou o ovo,
importa reflectir nas circunstâncias em que estas relações actualmente
se desenvolvem, perspectivar a sua evolução, concertar aquilo que for
concertável e regular as matérias em que a tensão que envolve estas
relações impede um efectivo estabelecimento de mecanismos de
auto-regulação.

Tem sido dedicada atenção crescente ao tema da formação de preços em
cada um dos elos da cadeia alimentar, bem como ao de uma melhor
aferição da efectiva distribuição de valor entre os operadores que a
integram. Quer a nível comunitário, quer a nível de diferentes
Estados-membro estão em estudo ou foram já criados Observatórios de
Preços e, nalguns casos, de Preços e Margens.
Esta é uma matéria interessante e importante, simples no conceito, mas
muito complexa na concretização.

Desde logo pelo leque cada vez mais alargado de bens alimentares
existentes no mercado que choca com a necessidade de encontrar e
utilizar amostras supostamente representativas de sectores e
categorias de produtos.

Depois, porque dentro de cada uma dessas amostras há que integrar
produtos - por exemplo, marcas de fabricante e marcas de distribuidor
- que têm configurações e estruturas de custos e de margens,
completamente distintas.

Uma escolha errada ou enviesada daquelas amostras descredibiliza o
esforço dos executores desta tarefa, e, acima de tudo, gera informação
errada.

Mas, mesmo que ultrapassado, de forma satisfatória, o exercício de
selecção das categorias de produtos mais relevantes e de construção de
amostras representativas, há que vencer a dificuldade seguinte,
relacionada com a recolha e tratamento de informação.

Se quisermos conhecer os preços efectivos das transacções entre a
produção primária e a indústria transformadora, desta para os clientes
da distribuição e, finalmente, os preços ao consumidor, temos que ser
muito objectivos nas metodologias e nos conceitos a utilizar.

Assim, relativamente aos preços à produção existe uma grande
transparência e informação recolhida sistematicamente.

Já em relação aos preços ao consumidor, a complexidade aumenta. São
muitas as referências, muitas vezes com valores diferentes em
diferentes espaços comerciais. Os preços têm que ser ponderados pelas
respectivas quotas de mercado.
No entanto, com mais ou menos trabalho e paciência, pode conseguir-se
uma elevada objectividade no apuramento desses valores, pois, afinal,
os preços de venda ao público são públicos por definição.

A dificuldade mais séria prende-se, contudo, com os preços de cessão
pelos fornecedores aos distribuidores.

A relação contratual (e extra-contratual) entre uns e outros tem um
espectro muito amplo e se muitas das suas cláusulas se esgotam em cada
transacção efectuada, muitas outras afectam conjuntos mais alargados
de transacções, dificultando o cálculo daqueles preços de cessão.

Numa empresa fornecedora, todos os descontos indirectos concedidos e
todas as acções e outras despesas promocionais suportadas se reflectem
no preço efectivo de venda dos seus produtos.

Para a empresa, o relevante não é o preço facturado, é o valor
efectivamente recebido.

Explicando um pouco melhor: se um fornecedor, por via dos múltiplos
descontos a que está sujeito, não recebe uma parcela importante dos
valores facturados, ou se tem que suportar contribuições, em dinheiro
ou em espécie, que lhe são exigidas para a comercialização dos seus
produtos, então tudo isso se reflecte negativamente na rentabilidade
da sua actividade.

Percebido o conceito, fácil é também perceber que toda essa
rentabilidade que o fornecedor perde, corresponde, na mesma e exacta
medida, a rentabilidade que o distribuidor conquista.

É essa rentabilidade perdida pelo fornecedor que inibe a
diversificação e a inovação dos seus produtos, inibe a realização de
acções publicitárias e de comunicação, inibe a progressão na cadeia de
valor, limita uma mais justa remuneração das matérias-primas.

Ao invés, é essa rentabilidade conquistada que permite aos principais
operadores da moderna distribuição serem hoje os campeões do
investimento publicitário, serem os maiores patrocinadores de eventos
no país, que permite a esses operadores investir em novos espaços
comerciais e em novos segmentos de mercado, que lhes permite apostar
em novas geografias.

Não considerar esta realidade ao nível dos trabalhos daqueles
Observatórios, escamoteia a verdadeira natureza das relações actuais
entre fornecedores e distribuidores e, obviamente, não traduz
fielmente a efectiva distribuição de valor ao longo da cadeia de
fornecimento.

Mas voltando às relações produção-distribuição, faz sentido recordar
que Portugal foi, de alguma forma, pioneiro no estabelecimento de um
acordo de auto-regulação entre as partes, com a assinatura, em 1997,
do Código de Boas Práticas Comerciais celebrado entre a CIP e a APED.

A incapacidade que aquele Acordo revelou para resolver os problemas
existentes naquelas relações, a sua inoperância e o avolumar dos já
referidos desequilíbrios negociais, levam, hoje-em-dia, os
fornecedores a não acreditar em mecanismos de auto-regulação, a não
ser que estes surjam na sequência de um novo quadro legal, nacional e
comunitário, que, pela via regulamentar, introduza algum reequilíbrio
nas relações entre fornecedores e distribuidores.

Esta via regulamentar deve, em nossa opinião, - quer na esfera
nacional, quer na esfera europeia - considerar a correcção de
desajustamentos, lacunas e incoerências da actual legislação, em
especial ao nível das denominadas práticas comerciais restritivas ou
desleais, mas também ao nível da disciplina dos prazos de pagamento,
ao nível das cópia parasitárias e ao nível dos procedimentos relativos
à avaliação das operações de concentração.

Área mais complexa, mas nem por isso menos importante, é a relacionada
com a regulação relativa às Marcas da Distribuição. Nada nos move
contra estes produtos, os quais, recorde-se, são fabricados em
unidades industriais de empresas fabricantes e até, pela sua crescente
quota de mercado, vêm adquirindo enorme importância para inúmeros
fornecedores.
No entanto, estas Marcas beneficiam do vazio legal em que se movem
para enviesarem o mercado.

Utilizam esse vazio legal para utilizar, em proveito próprio,
informação que a outros é vedada. Utilizam esse vazio legal para
adoptar políticas de preços e margens que condicionam a visibilidade
dos produtos e a escolha dos consumidores.

Estas Marcas permitem que os operadores da distribuição sejam, numa
área de elevadíssima concorrência, árbitro e jogador de um jogo em que
saem sempre a ganhar.

Neste campo, não se pretende nada de extraordinário: apenas que seja
regulada a sua presença no mercado, de modo a que possuam os mesmos
direitos, mas também as mesmas obrigações, que qualquer outra marca
comercial.

Finalmente, é fundamental que sejam criados mecanismos de arbitragem e
resolução de conflitos entre fornecedores e distribuidores,

Mecanismos simples, expeditos e que permitam decisões em tempo útil.

Mecanismos que sejam adoptados, com a necessária força legal, de molde
a que as respectivas decisões sejam acatadas, de forma indubitável,
pelas partes.

O poder político, para além do quadro legal, deverá também actuar noutras áreas.

Desde logo, estabelecendo uma definição clara das atribuições das
autoridades competentes. Certificando-se que não há espaços vazios
entre as respectivas esferas de actividade.

Assegurando que a actuação daquelas autoridades deixe de ser escassa,
reactiva, morosa e desajustada.

E não esquecendo a necessidade de promover uma monitorização expedita
e regular do funcionamento do mercado.

Desta forma, deverão estar reunidas condições para que aquelas
entidades consigam combater a especulação económica e a manipulação
dos preços junto do consumidor, seja pela via das constantes campanhas
promocionais com recurso à figura da venda com prejuízo, seja pela
utilização repetida dos chamados produtos e preços-isco, seja ainda
pela subsidiação cruzada de produtos, realizada a partir de políticas
de margens comerciais anti-concorrenciais e promotoras da
discriminação entre produtos.

Por imperativos económicos, mas também por imperativos ambientais, de
emprego e de responsabilidade social, o Poder Político deverá também
defender as produções locais, aumentar o consumo de proximidade, impor
uma melhor identificação da origem dos produtos e desincentivar as
importações desnecessárias, defendendo, dessa forma, uma maior
soberania alimentar.

Apenas por esta via, as relações entre a Moderna Distribuição e os
seus Fornecedores se poderão reequilibrar e ser pautadas por
princípios de boa fé, de transparência, de certeza e de simplicidade,
de equidade e de não discriminação, de não retroactividade, de
reciprocidade e de proporcionalidade na distribuição do risco,
princípios estes que, pelo menos em teoria e ao nível do discurso,
seguramente todos defendem.

Bruxelas, 19 de Junho de 2012

Pedro Pimentel
Presidente da Direcção da Associação Nacional dos Industriais de
Lacticínios (ANIL)

* intervenção realizada no âmbito do workshop sobre as "Relações ao
longo da cadeia agroalimentar", promovido no Parlamento Europeu pela
eurodeputada portuguesa Maria do Céu Patrão Neves e que teve lugar a
19 de Junho

Publicado em 21/06/2012

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