21.06.2012
Ricardo Garcia, no Rio de Janeiro
Se há uma incógnita na Rio+20 é até que ponto a sociedade civil está
de facto a ser ouvida nas decisões tomadas pela ONU.
Não são apenas 40 quilómetros de densa selva urbana que separam
Jacarepaguá do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. No Flamengo,
onde a sociedade civil se reúne na colorida Cúpula dos Povos, quase
ninguém parece saber o que os governos estão a decidir lá longe, na
conferência Rio+20. Nem mesmo que na terça-feira ficou acordado um
novo guião mundial para se tentar salvar o planeta.
"Fiquei sabendo por cima", diz o hare krishna Maha Guru, 33 anos, ou
Marcos Gouveia de baptismo. "Não sei, estou aqui dentro desde que
cheguei", alinha o argentino Alejandro Mariani, sentado na tenda do
Movimento dos Sem Terra. "A única coisa que a gente ouviu falar é que
estão discutindo um documento muito fraco", confessa Nathalia Barbosa,
16 anos, da Federação dos Bandeirantes do Brasil - uma organização
semelhante à dos escuteiros.
Se há uma incógnita ainda não resolvida no grande circo montado à
volta da Rio+20 é até que ponto a sociedade civil está de facto a ser
ouvida nas decisões tomadas pelas Nações Unidas. Representantes de
organizações não-governamentais tiveram assento nas salas de
negociações, mas sem direito a falar. Ainda assim, puderam fazer o seu
lobby directamente junto dos representantes governamentais nestas
sessões. Nem tudo correu bem e pelo menos numa reunião, sobre os
oceanos, as ONG foram convidadas a sair da sala no momento mais
crítico da discussão, segundo relatou na terça-feira, numa conferência
de imprensa, um representante da organização High Seas Alliance.
O que certamente não há é uma ligação umbilical entre o que se passa
no Riocentro, onde estão os governos, e o Aterro do Flamengo, onde a
Cúpula dos Povos é uma espécie de sinfonia de todas as causas sociais.
Em cada uma das tendas que pontilham a língua de área verde à borda da
água no Flamengo estão protestos, ou ideias, ou produtos, ou debates.
No espaço do Instituto Terra de Protecção Ambiental, dezenas de
pessoas ouvem uma explicação detalhada sobre a constitucionalidade ou
não do polémico código florestal brasileiro. Ao lado, na tenda Chico
Science, o tema é educação ambiental. Mais à frente, pede-se liberdade
para o povo sarauí, do Sara Ocidental. Adiante, os "catadores" de lixo
reciclável debatem aspectos da profissão. E um grupo de grevistas da
Universidade de Brasília veio à Rio+20 trazer as suas reivindicações:
"Nós estamos pedindo aumento", explica um trabalhador.
Na tenda do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, vende-se cacau de
agricultura biológica. A cachaça, também orgânica, já foi toda. A
produção é do assentamento Terra Vista, na Bahia, uma antiga
propriedade rural ocupada há duas décadas e onde Ayrton Baltazar, 72
anos, diz que não entram químicos: "Não mexo em veneno ou adubo há
mais de dez anos".
O professor de educação física Neumar Ramos, 33 anos, veio de
bicicleta desde Curitiba, no sul do Brasil, a 1100 quilómetros do Rio.
A conferência formal da ONU é algo distante, da qual nada sabe. "A
gente está totalmente fora", afirma. Cerca de 300 bicicletas se
juntariam à "marcha dos povos", prevista para a tarde. "Para nós, a
importância maior são os protestos, para mostrar que ainda estamos
aqui e que não vamos desistir".
No outro extremo do parque, a Cúpula dos Povos é essencialmente
indígena, com profusão de corpos pintados, cabeças com cocares,
chocalhos, flechas, penas e incontáveis índios a vender artesanato.
Cremilda Wassu, da tribo Wassu Cocal, do estado de Alagoas (nordeste
do Brasil), também não sabe o que os governos estão a decidir no
Riocentro. E também está ali para protestar. A sua tribo tinha,
originalmente, uma área de 57 mil hectares para praticar o seu modelo
de sustentabilidade. Hoje têm 2700 hectares. "As melhores áreas de
plantação estão com os sem terra e com os fazendeiros. Para nós, é só
serra e pedras", lamenta. "Como é que pode haver desenvolvimento
sustentável indígena sem terra?", pergunta.
Algumas posições da Cúpula dos Povos, decididas em reuniões plenárias,
têm sido encaminhadas para a cimeira dos governos. Também algumas
organizações estão presentes em ambos os fóruns. Mas mesmo para quem
tem conhecimento do que se está a passar no Riocentro, o sentimento
não é favorável. A agricultora japonesa Mariko Hamaguchi teme um
aspecto em particular do documento aprovado na terça-feira. "Economia
verde, não", diz, através de um intérprete, usando uma metáfora como
explicação: "A casa está quase destruída. Para recomeçar, é preciso
construir a base, uma ideia nova. Ideia velha é só para quebrar o
galho".
Hamaguchi pertence à Rede Civil do Japão para a Década das Nações
Unidas para a Biodiversidade e tem acompanhado as discussões no
Riocentro. Na Cúpula dos Povos, juntou-se aos protestos contra o
nuclear - ela que vive a 170 quilómetros de Fukushima e que deixou de
poder comer arroz integral, pois a radioactividade acumula-se na
camada externa do grão. "Agora, só arroz branco".
Enquanto os cariocas passeiam no Aterro do Flamengo, beneficiando da
tolerância de ponto concedida até sexta-feira, mais de uma centena de
chefes de Estado e de governo deram ontem início à parte formal da
Rio+20, em que será em definitivo o documento "O futuro que queremos",
já acordado pelas delegações de 193 países na terça-feira.
Com 49 páginas e 283 parágrafos, muitos com a impenetrável linguagem
diplomática das Nações Unidas, o documento aposta na económica verde
como "instrumento importante" para o desenvolvimento sustentável e diz
que é preciso mais recursos para os países menos desenvolvidos, sem
especificar quanto, nem de onde virá o dinheiro.
Também cria um fórum ministerial para a sustentabilidade no Conselho
Económico e Social da ONU e lança um processo intergovernamental para
discutir futuros "objectivos de desenvolvimento sustentável".
Embora haja mais algumas novidades, o texto tem sido criticado pela
falta de metas e datas concretas para pôr em prática o que estabelece.
http://ecosfera.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1551371
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