domingo, 15 de setembro de 2019

Produtor desvia água de ribeira que diz ser sua por uma ordem real dada há 134 anos


Um grupo de activistas não aceita que haja um homem que possa dizer "sou dono da ribeira, e faço da água o que quero". Sabotaram a rega de um laranjal de cultura intensiva e prometem voltar com novas acções.

Idálio Revez 6 de Junho de 2019, 21:12

A água que alimentava a cascata do vigário, na ribeira de Alte, deixou de correr porque está a ser desviada para um laranjal com 120 hectares. Face a isto, um grupo de activistas revoltou-se e proclamou: "A água é vida, não podemos permitir que nos seja roubada". E não estiveram com meias medidas: a comporta donde sai a água para a rega foi bloqueada com sacos de areia e cimento. E, por quatro dias, a cascata do vigário voltou a ser o bilhete-postal que atrai turistas e alimenta o ecossistema.

Mas os militares da GNR, chamados pelo proprietário, entraram em acção para repor a ordem no passado domingo à noite. Não se registaram feridos mas ficaram as ameaças no ar e promessas de que luta continua. Para o próximo fim-de-semana, no encerramento do festival Fusos (três dias de manifestação artística), está prevista uma manifestação junto ao concerto que se realizará na cascata do vigário

Um mundo selvagem para conhecer entre risos — mas para preservar a sério
"Puxaram pelos bastões luminosos mal eu disse boa noite", relata Daniel Pancadas, um dos elementos do grupo, constituído por portugueses e estrangeiros, que diz lutar por princípios e valores ambientais. "Saltei de cima de um paredão e fugi para não ser atingido", relata. O português, luso-descendente, viveu na Suíça e há dois anos regressou à terra dos seus pais, Alte, para "lutar por um mundo novo, livre da poluição". A ele e à Suzy Lucas, sua companheira, juntaram-se com mais uma dezena de amigos, a maioria estrangeiros. Vivem numa quinta com 3,5 hectares em Santa Margarida (Alte), onde se dedicam à agricultura.

"Somos como uma família", acrescenta Lorin, suíço, que também participou na operação de sabotagem. "Atirei-me à água, escondi-me, e eles [GNR] não me apanharam". No dia seguinte, o grupo organizou uma manifestação da aldeia para sensibilizar a população. "Recebemos ameaças da Guarda, alegando que a manifestação não estava autorizada", conta Suzy, que apresentou queixa contra a GNR de Salir no posto da Guarda de São Bartolomeu de Messines.

Os três protagonistas da operação, soube o PÚBLICO junto da GNR, foram identificados e está a decorrer um auto de notícia. "Somos naturalistas, não somos terroristas", sublinha Daniel Pancadas, manifestando discordância face a algumas regras instituídas: "A guarda questionou-me, um dia, pelo chip do cachorro, perguntei-lhe se as raposas também usavam chip", exemplifica

PÚBLICO -Foto
O presidente da junta de freguesia, António Martins, admite que existe um "conflito aberto porque há uma pessoa que se diz dono da água das fontes". Ovídio Alves, através da empresa Citrinalte, rega um pomar de citrinos com uma área de 120 hectares. "Sempre fomos contra o direito de um particular poder desviar toda a água da ribeira - é contra a natureza", sublinha o autarca.

Por seu lado, o citricultor alega ser detentor de um direito histórico, que vem do tempo de D. Luís, transferido em 2012 quando comprou a principal parcela do morgado de Alte. Por carta régia de 20 de Maio de 1885 recebeu poderes de "livre utilização das águas para os fins que entender" e pode, inclusive, registar na conservatória predial a fonte de Alte como sendo parte integrante da sua propriedade privada. Caiu a monarquia, mas mantiveram-se os privilégios.

A polémica que se vive neste momento em Alte, prossegue o presidente da junta, socialista, surge como "um remake" do que se passou há mais de meio de século quando houve, também, uma disputa pela posse e controlo da água por parte dos herdeiros do morgado. "A fonte grande é uma fonte do domínio público desde há séculos", lê-se na acta da sessão extraordinária da autarquia, realizada no dia 21 de Julho de 1956, em que o participou, como mediador, o regedor da freguesia, António Gomes Cravinho (tio-avô do ex-ministro, João Cravinho).

Pombal e Alte juntam-se este fim-de-semana à Noite Europeia dos Morcegos
"Quem salva o vigário [cascata], pergunta Daniel Pancadas. Da parte que lhe toca, enfatiza, está disposto a lutar até onde for preciso". O artista plástico Daniel Vieira, filho de José Cavaco Vieira, à altura presidente da junta, comenta: "Não sou contra uns e a favor dos outros, na partilha das águas, mas estou contra os laranjais de cultura intensiva"

A empresa agrícola é detentora de uma licença de utilização dos recursos hídricos emitida pelas entidades do Ambiente em 2014 com uma condição: "obriga-se a implementar uma gestão adequada que vise garantir as quantidades de recurso para os usos existentes a jusante da utilização". O que está em causa, esclarece a junta de freguesia, é garantir o caudal mínimo ecológico da ribeira que permita "manter água corrente todo o ano, sustentando nos seus açudes e pegos uma grande variedade de flora e fauna, entre as quais várias espécies de peixes, tartarugas, aves aquáticas e ribeirinhas e mesmo uma pequena comunidade de lontras".

A autorização, válida até 2024, refere ainda a necessidade de manter o "espaço de usufruto público situado imediatamente a jusante da EN 124 [cascata do vigário]". Além disso, sugere, a gestão "deverá ser efectuada em coordenação com a junta de freguesia de Alte".

O autarca considera que os 120 hectares de citrinos é um "exagero para a água disponível". Daniel Vieira comenta: "Ele não tem culpa, o responsável é quem o autorizou [a desviar a água da ribeira]". A este produtor junta-se João Cabrita Gonçalves que tem mais 120 hectares de citrinos em Benafim e Alte. No largo do moinho da levada, à porta de casa, Manuel Luís, de 77 anos, recorda: "Isto era bonito quando água corria até à queda do vigário, viam-se as lontras, agora o que sai das poças de água são mosquitos"