quarta-feira, 4 de julho de 2012

Tempestade perfeita

OPINIÃO


Carlos Neves




A situação actual dos produtores de leite é má e as previsões para o
futuro próximo não são boas. Conjugam-se neste momento uma séria de
factores adversos que lembram Rui Veloso: "…parece que o mundo inteiro
se uniu pra (nos) tramar":

A crise / recessão económica que provoca acentuada redução do consumo
de produtos de valor acrescentado e transferência das compras para
produtos mais básicos e, sempre que possível, de marca branca. Rude
golpe para a teoria de Portugal apostar em produtos diferenciados. O
povo português tem cada vez menos dinheiro e procura cada vez mais
comida barata.


O aumento conjuntural da produção de leite em Portugal, consequência
de um inverno seco (mau para as pastagens, péssimo para o preço da
palha vinda de Espanha, ameaçador para o stock de palha esperado para
o próximo ano, mas óptimo para criar vacas e produzir leite) e talvez
da maior disponibilidade de recria, de melhoria do maneio, da
tentativa de pagar as dívidas com aumento da facturação…

O aumento colossal (a gente avisou…) da produção de leite na Europa,
estimulado pelo aumento do preço ao produtor (que nunca chegou a
Portugal) e permitido pelo aumento anual da quota leiteira e a
prometida "aterragem suave" que se confirma ser uma amaragem num lago
de leite prestes a transbordar.

O aumento especulativo do custo das matérias-primas de alimentação
animal, sobretudo soja e companhia. Não sei se a culpa é do novo
apetite dos chineses, da bolsa de futuros de Chicago ou dos "players"
mundiais de matérias-primas. Só sei que, quando se diz que época da
comida barata acabou, estamos a falar da comida para as nossas vacas.

A tempestade é ainda mais perigosa porque desapareceu o abrigo que nos
podia defender: As quotas leiteiras têm fim marcado para 2015 e só uma
grave crise de preço nos países que mandam (já esteve mais longe mas
não sei se chega lá) pode alterar a decisão tomada. É uma medida que
deve continuar a ser defendida em Bruxelas, apesar do nosso limitado
poder de influência.

Na ausência definitiva do abrigo das quotas, ou porque a sua eficácia
actual é pouca (por termos já uma quota superior às necessidades do
mercado europeu), é preciso decidir que caminho vamos escolher: A
opção de entrar em pânico / "salve-se quem puder" consiste em cada
indivíduo / empresa e cada sector da fileira procurar salvar-se
passando por cima dos outros para manter a sua margem. Incluo aqui
tanto as guerras de promoções, a utilização do leite como produto-isco
como, a montante da cadeia produtiva, a hipotética descida do preço do
leite com o objectivo de controlar a produção, que só produz efeito
quando provoca o fecho de explorações por falência ou desistência.
Esse ou outro tipo de penalizações generalizadas são injustas por
castigarem todos os produtores, mesmo aqueles que se mantiveram dentro
da quota ou do seu histórico de produção. A opção menos má será o
"resgate" organizado pela "protecção civil", que implica a intervenção
do Estado e a cooperação dos indivíduos, por exemplo no
estabelecimento e fiscalização do cumprimento de regras para evitar os
abusos dos mais fortes nas relações contratuais distribuição-indústria
e indústria – produtor. Importa também não esquecer, como até agora, o
papel que Governo / União Europeia podem / devem desempenhar para
combater a especulação no custo das matérias-primas da alimentação
animal. A cooperação deve ainda ir mais além do cumprimento das
regras, por exemplo, num diálogo franco para ajustar a produção às
necessidades do mercado de indústria e distribuição.

Não prevejo que esta tempestade possa acabar com a produção de leite
em Portugal, mas receio um elevado número de vítimas, algumas
(explorações) com dimensão significativa e temo sobretudo que o sector
fique ainda mais deprimido e amordaçado. Por isso, enquanto há vida,
voz e leite português, aqui fica mais um SOS.

Carlos Neves
Presidente da APROLEP - Associação dos Produtores de Leite de Portugal

http://www.agroportal.pt/a/2012/cneves3.htm

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