sábado, 30 de dezembro de 2017

Reforma florestal 2017 – o início de uma nova realidade ou mais uma oportunidade perdida?

António Bento Gonçalves
29 de dezembro de 2017 às 09:30

Os espaços florestais, tal como todos os territórios, são uma construção social, lugar de confronto, de tensões, de conflitos de uso e de apropriação e transformação, ou seja, estão sujeitos a múltiplos interesses, na sua maioria legítimos, mas muitas vezes antagónicos, pelo que, qualquer reforma se afigura de difícil aceitação e implementação.

No entanto, Portugal tem uma longa tradição no âmbito do Planeamento, do Ordenamento e da Gestão Florestal, podemos aqui nós elencar, sem pretensão de ser exaustivos, alguns marcos históricos importantes:

1824 - 1881 – Administração Geral das Matas;

1850 – Início da arborização e fixação das dunas;

1868 – Relatório sobre a arborização do país;

1864 - primeiros trabalhos de ordenamento florestal, de acordo com um plano previamente estabelecido (Barros Gomes - Matas Nacionais da Machada e Vale de Zebro);

1882 - primeiro verdadeiro "plano de ordenamento florestal" (Barros Gomes - Mata Nacional de Leiria);

1896 – criação da Comissão para elaboração dum projecto de arborização das dunas móveis;

1897 - Projecto geral da arborização dos areais móveis de Portugal;

1901- início do "Regime florestal";

1910 - Plano geral de arborização de montanhas;

1938 - Plano de povoamento florestal;

1953/1974 - Planos de fomento (I, II, Intercalar, III, IV);

1973 - Plano director do Parque Nacional da Peneda-Gerês.

Neste contexto permitimo-nos destacar a legislação do Regime Florestal, publicada de 1901 a 1905, e que veio estabelecer as condições para a generalização da elaboração de planos de ordenamento para as matas sob gestão do Estado.

De entre todos os planos, realçamos o Plano de Povoamento Florestal (1938-1972), apelidado como o "plano florestal do século" em Portugal, e que, visando 5 grandes objetivos, apresentava uma visão integrada para a resolução dos problemas dos espaços florestais:

1. inverter a degradação ecológica verificada em diversas bacias Hidrográficas e regiões montanhosas;

2. constituir povoamentos florestais de elevado valor económico, não só ao nível da produção de madeira, mas também de lenhas e outros produtos;

3. instalar e melhorar pastagens nas melhores áreas para o efeito;

4. ocupar a mão-de-obra excedentária nas regiões abrangidas;

5. produzir paisagens de elevado valor cénico.

Apesar desta longa tradição, Portugal foi aprofundando a sua clivagem entre um litoral mais urbano e um interior mais rural e montanhoso, ficando este último, muitas vezes, à margem das dinâmicas de desenvolvimento, com uma população cada vez mais reduzida e envelhecida.

Neste contexto, ano após ano, vamos assistindo ao aumento, tanto do número como da dimensão dos "grandes incêndios" e, especialmente, da sua capacidade destruidora. Com efeito, se até 1986 nunca tínhamos sido flagelados por um incêndio com dimensão superior a 10.000 ha, 2003 viu franquear a marca dos 20.000 ha e, 2017, por duas vezes, a dos 25.000 ha, duas vezes a dos 30.000 ha e uma, a dos 40.000 ha.

Assim, em 2003, depois de 21 pessoas mortas e mais de 425.000 ha ardidos, assistimos ao início da primeira "reforma estrutural do sector florestal" do séc. XXI (Resolução do Conselho de Ministros nº 178/2003 DR nº 266, I-B Série, de 2003.11.17), mas que rapidamente viu "esfumarem-se" as medidas efetivamente implementadas.

Com efeito, e a título de exemplo, recorde-se a APIF (Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais), organismo que ficou na dependência do Ministério da Agricultura, criada em abril de 2004 e extinta em dezembro de 2005, depois de, em pouco mais de um ano e meio, ter criado os Gabinetes Técnicos Florestais (GTF) e de ter sido responsável pela elaboração do muito polémico Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios (PNDFCI).

Chegados, pois, a 2017, com todos os diagnósticos feitos, com muito conhecimento técnico e científico acumulado nas universidades, com muita (demasiada!?) legislação, assistimos ao ano mais dramático em termos de perda de vidas humanas relacionadas com catástrofes (ditas) naturais, só sendo ultrapassado pelo sismo de 1755 e pelas cheias de 1967, com mais de 100 pessoas a morreram encurraladas por incêndios extremos, em apenas dois dias, 17 de junho e 15 de outubro, antes e depois da chamada época "normal" dos incêndios e, onde apenas um pequeno número de incêndios foi responsável pela esmagadora maioria da percentagem da área ardida (124 incêndios, 1,26% do total das ignições, foram responsáveis por 93% do total da área ardida, 412.781 ha).

Assim, e mais uma vez, de forma reativa e não proactiva, surge uma segunda reforma florestal, em menos de 15 anos.

No entanto, quando se analisam os 12 diplomas que compõem a Reforma Florestal (tendo 1, o do "Banco Nacional de Terras", sido rejeitado), verificam-se múltiplos problemas, dos quais, a título meramente exemplificativo, destacamos aqui 4:

- o cadastro florestal, a mais imprescindível de todas as "ferramentas", no âmbito de uma Gestão Florestal Sustentável, ser apenas implementado, como projeto-piloto em dez municípios, podendo "eventualmente" estender-se a todo o território nacional;

- pouco ou nada ser feito em matéria de ordenamento do Território, não parecendo suficiente os Planos Diretores Municipais (PDM) adaptarem as suas disposições ao conteúdo dos PROF (Planos Regionais de Ordenamento Florestal);

- a educação florestal, no âmbito da educação ambiental, na esfera da educação para a cidadania, ser completamente esquecida;

- incentivar-se instalação de novas centrais de valorização de biomassa, sem ter havido uma monitorização e uma avaliação do seu real impacte na redução e gestão dos combustíveis.

Assim, é sem grande ilusão que desejamos que 2017 marque o início de uma nova realidade na política florestal em Portugal, mas tememos que, tal como os anos de 2003 e 2005, este trágico ano seja apenas recordado como o de mais uma oportunidade perdida. n

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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