terça-feira, 27 de agosto de 2013

Os fogos florestais e o que comemos

HENRIQUE PEREIRA DOS SANTOS

26/08/2013 - 12:45

É completamente errado perseguir a quimera inatingível de um Portugal sem fogos.


Há anos Portugal adoptou o slogan "Portugal sem fogos depende de
todos" e há anos que o erro desse slogan persegue a política de gestão
do fogo, com fortes custos sociais, e com um peso brutal para os
contribuintes.

Portugal terá sempre fogos, como sempre teve, pelas mesmas razões que
o fazem ser o maior produtor mundial de cortiça.

Há condições de solo e clima que são especialmente favoráveis à
existência de fogos, muito mais favoráveis no noroeste da Península
Ibérica (a Galiza concentra cerca de 50% de todos os fogos de Espanha)
do que noutras regiões mais quentes e mais secas.

Estas condições de elevada produtividade primária (ou, para ser mais
directo, onde os matos crescem muito), associadas a condições
meteorológicas extremas em alguns períodos (80% da área ardida em
Portugal ocorre em 12 dias no ano) são a base dos fogos que vamos
tendo e que sempre teremos.

Há cinquenta, sessenta anos, no entanto, os fogos não tinham a
dimensão e severidade que têm hoje, nem eram motivo de notícia, a não
ser de forma muito esporádica.

Mas isso não quer dizer que todos os anos não ardesse uma grande área,
quer apenas dizer que ardia de forma diferente, essencialmente em
queimadas de pastores.

De então para cá o que mudou foi a forma de nos aquecermos e
cozinharmos, passando da lenha para o gás, a forma de fertilizarmos a
terra, passando do estrume da cama do gado para os fertilizantes
químicos e a produção das áreas não agrícolas, passando da dominância
da pastorícia para a dominância da florestação.

Do que precisamos é escolher o que arde, quando arde e como arde,
porque teremos sempre de conviver com o fogo.

Ou seja, a tal produtividade primária, que sustentava a pastorícia e
agricultura fornecendo mato como matéria-prima, passou a ser um
problema da florestação que considera o mato como resíduo.

Ao transformar uma fonte de riqueza num custo de exploração criámos as
condições para a sua acumulação, ou seja, regámos Portugal com
combustíveis, esperando que nunca nenhuma ignição viesse a iniciar um
fogo.

Fizemos até grandes campanhas para a redução das ignições, fingindo
não saber que 90% da área ardida resulta de 1% das ignições, e que as
áreas com maiores fogos não coincidem com as áreas com mais ignições.

O maior número de ignições está onde estão as pessoas, as maiores
áreas ardidas estão onde faltam as pessoas e a gestão do território.

Ora é aqui que entra a responsabilidade de cada um de nós, quando
deixamos de comer cabritos que valorizem a pastorícia ou quando
escolhemos alimentos mais baratos, deixando sem competitividade as
zonas mais difíceis (embora produtoras de serviços ambientais).

São as nossas opções alimentares quotidianas que determinam as
decisões dos produtores de alimentos e fibras e que podem gerir o
território de forma sustentável.

Não vale a pena pensar que exista economia que suporte as milhares de
equipas de sapadores que seriam necessárias, em Portugal, para
preparar o nosso país para arder sem que isso se traduzisse em perdas
relevantes.

Por melhor que seja o trabalho dos bombeiros e da protecção civil (e
na verdade é difícil que seja perfeito quando há uma gritante falta de
conhecimento sobre o território e as suas relações com o fogos), é
impossível ter Portugal sem fogos.

É sobejamente conhecido o paradoxo do fogo: cada êxito na supressão do
fogo significa a continuação da acumulação de combustíveis que é a
semente do fogo seguinte, mais extenso e mais severo por maior
disponibilidade de combustível.

Do que precisamos é escolher o que arde, quando arde e como arde,
porque teremos sempre de conviver com o fogo.

E se uma parte destas escolhas resultam em políticas públicas, outra
parte, a maior, resulta das opções de consumo, em especial alimentar,
que fazemos todos os dias.

Enquanto nos concelhos mais fustigados pelo fogo não vir as ementas
das escolas, dos lares, dos quarteis de bombeiros, dos restaurantes,
dos hospitais, a contribuir para sustentar as fileiras económicas que
têm capacidade de gerir os combustíveis, não posso deixar de lamentar
as perdas, em especial de vidas, que resultam dos fogos, mas
continuarei a dizer que essas perdas são da minha e da tua
responsabilidade, de mais ninguém.

http://www.publico.pt/ecosfera/noticia/tu-e-eu-e-que-gerimos-os-fogos-1603998

1 comentário:

Anónimo disse...

Ora aqui está um artigo fruto de uma estrema lucidez e coragem que tem faltado na política florestal. Sem rentabilidade económica e relações comerciais justas entre os produtores florestais e agrícolas e a grande indústria e a grande distribuição não há boas intenções que nos valham. enquanto prevalecer a ganância do sistema económico instalado o país vai continuar a arder.

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