domingo, 23 de novembro de 2014

Concorrência no mercado de resíduos de embalagens: vinho novo em odre velho?

PEDRO AMARAL E ALMEIDA 23/11/2014 - 01:04
Se se quer promover uma efectiva concorrência sem pôr em causa o bom funcionamento do sistema, não se deveria antes proceder primeiro à alteração do desfasado quadro legal de 1997 e actualizá-lo?


O processo de atribuição de licenças no âmbito do mercado de resíduos de embalagens vem-se arrastando desde 2010, ainda sob a égide do anterior executivo. De um lado, dois operadores económicos: um, já instalado no mercado e que pretende obter uma licença para prosseguir a sua actividade; outro, um novo player e que pretende obter uma licença para, pela primeira vez, ingressar nesse mesmo mercado. Do outro lado, a administração licenciadora, que tarda a decidir.

Quais as razões que justificam a complexidade da decisão? A nosso ver, há pelo menos três variáveis presentes neste processo cuja articulação não deve deixar de ser devidamente ponderada: o mercado, a concorrência e a legislação aplicável, que data de 1997.

Em primeiro lugar, é preciso não perder de vista que estamos perante um mercado atípico, o qual não visa a satisfação de necessidades naturais dos agentes económicos, mas sim o cumprimento de objectivos e de obrigações fixados pelo legislador. Com efeito, por detrás da criação e do funcionamento do "mercado" de resíduos de embalagens em Portugal está, desde logo, a obrigação do Estado Português de cumprir os objectivos de valorização e reciclagem de resíduos de embalagens impostos pelas directivas comunitárias. Para o cumprimento desses objectivos, apostou-se fortemente na criação de circuitos de recolha selectiva e triagem (de que os ecopontos de rua são a face mais visível), obrigando os municípios portugueses – que detêm o monopólio da recolha de resíduos sólidos urbanos – a acrescidos encargos na criação e no funcionamento das respectivas estruturas. O suporte financeiro do sistema provém, por seu turno, das contribuições pagas pelos embaladores e impostas por lei, numa aplicação prática do princípio ambiental da responsabilidade alargada do produtor.

Como se observa, é bastante intenso o interesse público que está subjacente ao funcionamento do "mercado" de resíduos de embalagens, bastando ter presente que a parte mais significativa das receitas do sistema serve para custear os encargos dos municípios com a recolha e a triagem dos resíduos de embalagens, sendo o respectivo "preço" fixado por via administrativa.

Podendo a gestão deste sistema ser feita por entidades públicas ou por privados, optou o legislador de 1997 pela iniciativa privada, num modelo de licenciamento bastante sui generis: são as entidades candidatas à obtenção de licença para a gestão do sistema quem propõe as regras reguladoras do mesmo, as quais, por seu turno, são negociadas com as administrações e vertidas no texto da licença. E o sistema tem até agora funcionado, dado que, desde o início, houve apenas uma única entidade gestora licenciada, tendo a administração podido conformar com maior facilidade as regras da licença, dada a existência de um único interlocutor.

Com a entrada de um novo player, o paradigma do "mercado" altera-se e a realidade que agora se afigura passará pela coexistência de duas entidades gestoras, actuando em concorrência. Não querendo entrar no debate sobre as vantagens e desvantagens de um modelo concorrencial no "mercado" atípico dos resíduos de embalagens, há, todavia, que centrar a discussão sobre a apetência do actual quadro legal em matéria de licenciamento das entidades gestoras para acomodar candidaturas concorrentes.

Ora, é esse quadro legal que se encontra totalmente desadequado face à realidade concorrencial que se pretende promover. Isto é, está-se a procurar pôr o vinho novo da concorrência no sector dos resíduos de embalagens no odre velho da legislação ainda em vigor.

Com efeito, a concorrência, quer neste, quer em qualquer outro mercado, pressupõe que os agentes económicos actuem em igualdades de circunstâncias, com permissões e obrigações da mesma natureza e quantidade. Ora, no actual modelo de licenciamento, em que são as próprias entidades candidatas a definir as regras que regerão a sua actividade, duas candidaturas ditarão necessariamente o estabelecimento de regras diferentes quanto ao modo de actuação, estando a administração legalmente impossibilitada de proceder, por imposição, à sua uniformização.

É certamente esta encruzilhada jurídica e a consequente difícil composição dos interesses em presença que representa o maior obstáculo à concretização do processo de atribuição de licenças no âmbito do mercado de resíduos de embalagens.

Qualquer decisão que agora se adopte sem a adequada cobertura legal poderá ditar uma intensa disputa jurídica, com óbvios reflexos negativos na satisfação dos diversos interesses públicos prosseguidos com a gestão do sistema

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