segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A desconcertante invisibilidade do mundo rural


20-11-2017 por António Paula Soares 235

Será que as tragédias recentes ensinaram algo sobre o mundo rural?
 
 
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Vivemos tempos preocupantes. Tempos que muitos pensaríamos pertencerem a um estranho futuro. Algo proveniente de um imaginário de ficção, onde muito do que se passa nos nossos dias seria como um romance futurista. Mas o mundo hoje parece que roda a uma velocidade maior, a um ritmo desconcertante onde o simples ato de ver um qualquer telejornal nos parece transportar para o tal mundo imaginário que agora parece que veio para ficar. 

As alterações da sociedade são uma realidade, o que ontem era correto, parece que hoje nos tentam impingir de uma forma forçada que está errado, em forma de novas ideologias, em que o politicamente correto tende a toldar-nos de uma forma subversiva e enganadora sobre a realidade dos factos.

E essa forma estranha e hipócrita de tentar moldar as mentes não poderia ter melhor espelho do que a realidade da forma como a sociedade vê o panorama rural Português. Panorama que pouco ou nada interessa a quem apenas o usa como refugio turístico esporádico de uma escapadela da urbanidade confortável, ou como escape político para vazios ideológicos. De quem se regozija com uma previsão meteorológica que convida a visitas à praia em Outubro, ou a dias constantes de belo prazer em esplanadas em pleno Novembro, ao passo que no mundo rural os agricultores desesperam com a seca, com a falta da chuva que a cidade abomina, com a sede dos animais, do atraso dos pastos, e do pó que não assenta nem permite cultivar os alimentos cuja produção já está atrasada para a mesa dos Portugueses.

A triste realidade das tragédias que se iniciaram nos primeiros meses de verão com os fogos rurais trouxe para a ribalta um mundo esquecido, um mundo abandonado de gentes e de costumes, sem os pastores do antigamente, sem os agricultores do presente, sem os guardas florestais nem os cantoneiros, sem a economia local e tradicional. É um mundo pelo qual quase ninguém passa, ou se passa poucos entendem. É um mundo sem economia, sem forma de enraizar as populações nem de criar riqueza. É este mundo que ficou abandonado em troca do litoral, e com isso restringiu ao expoente máximo a capacidade de gestão e a capacidade económica de trabalhar a terra com um pensamento no futuro.

Para o mundo rural Português, o tal que foi assolado pelos fogos, pelas mortes de pessoas, pela perda da pouca economia que ainda existia, pela perda das florestas e animais, pela perda da natureza de uma forma devastadora, o futuro já quase que não existia, ou estava ali tão perto de acabar.

E com estas tragédias, esse futuro poderá mesmo ter acabado, isto porque mesmo com todo o tempo de antena, que correu mundo e se prolongou no tempo, mantém-se de uma forma desconcertante a invisibilidade do mundo rural Português. Invisibilidade essa patente em alguns dos nossos atores políticos, cuja recente disponibilidade para se dedicarem a temas do mundo rural foi muitas das vezes imposta por uma pressão social em que grande parte da população não percebeu, e ainda não percebe, como pôde tamanho cenário dantesco ter ocorrido e sem que nada tivesse sido feito para o travar.

Mas infelizmente é fácil de perceber, mas apenas alguns o parecem querer. É tudo uma questão de economia, de economia rural, daquela que não se analisa nas bolsas de valores, mas que é transversal para a grande maioria do território Português, que não à beira mar plantado. A agricultura, a pecuária, a floresta, a caça e o turismo são os pilares dessa transversalidade económica, que cria sustentabilidade a todos os que vivem ao seu redor. E aqui é que reside o erro político, pois são já várias décadas de governo focado para os únicos locais que elegem deputados, que formam governos, que formam impérios políticos, ou seja: as cidades e os grandes centros urbanos. Na altura de propor orçamentos, de definir estratégias, de planear o futuro, parece que quase todos se esquecem do tal mundo rural, aquele que arde desenfreadamente, que seca longe da vista, mas que tanto incomoda momentaneamente a muitos quando as imagens passam em horário nobre.

Não passaram muitos anos desde que a imagem do agricultor era uma imagem depreciativa e vista com desdém para quem se apresentasse como alguém do campo. A agricultura teve tempos de ouro, os jovens viram no campo a fuga para o desemprego que assolava as cidades, a floresta dinamizou-se por vários anos, a caça povoava o campo e alimentava aldeias, com emprego e turismo. E que se passa agora?

Nada, ou muito pouco que seja favorável. As alterações climáticas vieram mesmo para ficar, estamos em Novembro e grande parte do País está ardido, a restante parte sofre a pior seca de que há memória, a água desaparece das barragens e falta nas nascentes, os campos estão castanhos como em Agosto, os animais magros e sedentos, e o olhar dos homens e mulheres do campo procuram no horizonte as soluções que tardam em chegar e que se assemelham cada vez mais a miragens de um oásis que não existe.

Da realidade virtual dos gabinetes políticos da urbe surgem gritos de revolta e discursos inflamados com as magnânimas soluções para todos os males do mundo rural, sem sequer terem muito bem a perceção de onde o mesmo começa. Exceção feita aos verdadeiros deputados do mundo rural, esses com um trabalho redobrado para clarear as mentes mais distorcidas.

Os primeiros, são os políticos que diabolizam os eucaliptos sem perceberem o que está por detrás, que cerram punhos e os batem na mesa, quando os proclamados incautos e despropositados agentes do mundo rural os alertam que de nada adianta proibir os eucaliptos se tudo o resto não for feito. Se não se fixarem as pessoas na ruralidade, se não se criar a economia que tanto teima em aparecer. Os mesmos que proíbem atrás de proibições, que privam o estado do seu papel constitucional de ser igualitário para com todos, de fazer cumprir as leis vigentes, sendo agora tão mais simples proibir o que não se consegue controlar e fiscalizar.

Os mesmos que se deixam de ouvir quando afinal o que também desapareceu foi o Pinhal de Leiria, e tudo o que parecia ser a solução para todos os males da floresta afinal não era suficiente para prevenir e travar a infeliz morte de muitos outros num curto espaço de tempo e num futuro próximo. Os mesmos que querem sobreiros e azinheiras por todo o lado, mas que nem sabem, ou não querem saber, que essas mesmas árvores morrem a um ritmo galopante, sem que o estado se preocupe em tentar perceber e combater os porquês. Os mesmos que não querem nem saber a razão de ser de os pinheiros serem afetados por pragas e doenças. Os mesmos que se insurgem contra a passividade do estado na proliferação da tuberculose transportada por javalis, mas que depois viram as costas e exigem a proibição da caça. Os mesmos que mentem descaradamente ao dizer que os coelhos desaparecem por caça excessiva, quando apenas nas zonas de caça se encontram os coelhos que salvaguardam um sem número de outras espécies protegidas, os mesmos que nem sabem que os coelhos estão a ser dizimados por vírus incontroláveis. Os mesmos que empunham palavras de ordem contra a agricultura e a pecuária porque as mesmas não se regem pelos seus radicalismos ideológicos. Os mesmos que gritam de peito cheio sobre os males do mundo rural, mas no qual nada fazem, e do qual pouco ou nada sabem.

É uma hipocrisia politicamente hábil na sua vertente aproveitadora da ignorância de quem não sabe, mas que convence quem nunca nada fez pelo mundo rural que afinal tem as respostas para tudo. Mas na realidade tudo o que propõem é uma ideologia utópica de um mundo que não existe, nem pode existir.

Ouvimos recentemente um político dizer que o mundo rural tem que ser mais resiliente. Mas só quem nada conhece do mundo rural é que pode pôr em causa a resiliência das suas gentes. Pois essas são fortes e corajosas, e conseguem erguer-se dos mais provocadores infortúnios.

O que o mundo rural precisa não é de conselhos ou apenas de afetos. Precisa de apoio e de estratégias, precisa de fazer parte do plano estratégico nacional, precisa de ser lembrado não apenas quando as imagens dos fogos e da seca entram pelas televisões.

Precisamos deixar de ser invisíveis…

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