domingo, 3 de dezembro de 2017

Terras de regadio onde já foram lançadas sementes de sequeiro



José Palha trocou as culturas intensivas de milho por sementes menos exigentes em termos de água  |  LUÍS BRANCO/GLOBAL IMAGENS
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Agricultura foi obrigada a mudar o rumo às culturas. Na Herdade da Bencoca, onde o regadio foi pioneiro, optou-se por lançar sementes de trigo em vez do milho, que exige mais água

Entre os extensos 220 hectares de terras de barros com generosas produtividades, o milho e o girassol já foram reis anos a fio na Herdade da Mencoca, nos campos que circundam Montoito (Redondo), desde que a barragem da Vigia passou a dar luz verde às campanhas de primavera/verão. Foi por aqui que se instalaram dos primeiros pivôs de rega no Alentejo, no início da década de 80 do século passado, abrindo portas a densas manchas de milheirais a perder de vista.

Mas este ano José Palha travou a rega a fundo. A seca obrigou o agricultor a mudar o rumo às culturas. Em vez de esperar pela próxima campanha de rega, já há duas semanas lançou à terra sementes de sequeiro. Há trigo duro e trigo mole distribuídos ao longo de 90 hectares, que deverão estar no ponto lá para junho para serem colhidos.

"Semeámos à espera que chovesse, mas não choveu nada", lamenta resignado, enquanto se põe de cócoras para pegar num torrão de terra seca que se desfaz assim que fecha a mão. "Como isto está agora", desabafa, esclarecendo que estas terras terão sempre torrões, mesmo depois de lavradas, embora o mais importante é que haja "uma boa cama de sementes", justifica, reparando como um grão desenterrado na zona mais periférica da sementeira dá sinais de germinação. "Já viu o que é a natureza? Espantoso. Mesmo sem água está a crescer por efeito da humidade da noite", diz, avançando pelo trilho até chegar ao pivô que poderá entrar ao serviço por estes dias se a chuva teimar em não cair por aqui.

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Apesar de a Vigia estar a 10% da sua capacidade de armazenamento, sendo já reforçada por 200 metros cúbicos de água por hora a partir da barragem de Alqueva, acredita que a associação de beneficiários irá libertar os recursos hídricos que precisa para a sua propriedade.

Alega estar a viver uma situação de exceção, pelo que ao ter deixado de parte as culturas intensivas de milho, precisa que também o sequeiro entre nas contas de quem gere a rega por estas paragens.

"Estou a fazer culturas menos exigentes em recursos e hoje não faz sentido não dar água ao sequeiro para a tentar guardar para o regadio de primavera/verão. Se a seca continuar, nessa altura, pode não haver recursos hídricos para regar as culturas e hoje estaria a penalizar-se quem está a pensar mais à frente", alega o produtor, acrescentando que há contas relevantes neste processo, na medida em que a rega dos cereais deverá contribuir para duplicar a produção a colher lá para junho de 2018.

Aliás, José Palha tem as contas de cabeça. Um hectare de milho custa 2 mil euros ao produtor e gasta mais de 7 mil metros cúbicos de água por campanha. Pode dar umas 15 toneladas, hoje a preços de 160 euros, depois de em 2012 ter chegado aos 230/250. "Os custos estão altíssimos e a rentabilidade é baixa", constata o produtor, avançando que os cereais de outono/inverno, como trigo duro ou mole para massas alimentícias - os mais rentáveis - poderão chegar às duas toneladas e meia, subindo até às cinco com rega. Garantem um preço de 200 euros por cada mil quilos, gastando entre mil a 1500 metros cúbicos de água por hectare.

"Num ano como este os cereais voltam a ser uma boa opção, até perante a queda do milho nos mercados", diz, admitindo que em terras banhadas pela albufeira de Alqueva, onde há limitações à rega, ou no Ribatejo "se continue fazer milho como sempre". Até porque a silagem de milho nunca será dispensada das muitas vacarias de leite, para alimentar os bovinos, tendo de ser feita em zonas com garantias totais de água, ao contrário do girassol, outro grande consumidor de recursos hídricos.

Ou seja, explica, "se o girassol for regado com metade da água pode apenas baixar a produção, mas o milho perde-se mesmo e morre, se não tiver a água necessária", diz, o que ajudou a justificar a decisão da família este ano. E se um dia faltar milho em Portugal? José Palha diz que a hipótese é quase nula, mas que, ainda assim, a solução passaria sempre pela importação a partir de Espanha, ressalvando que a silagem de milho nunca será um produto que possa ser comprado na Ucrânia, Brasil ou Estados Unidos devido ao elevado custo do transporte.

A dúvida que assalta José Palha nos dias de hoje passa pela sementeira que se segue entre os cerca de cem hectares ainda disponíveis. "Se virmos que o inverno vai ser seco, vamos para a cevada até fevereiro", diz, admitindo que a maior certeza aponta à aposta nos cereais mediante as dúvidas em torno da capacidade da albufeira da Vigia em poder regar na próxima primavera .

Daí que apostado em semear já o trigo eliminando o risco de ficar "muito condicionado", já que dentro de umas semanas só lhes restava a possibilidade de fazer cevada, explica, garantindo que estas terras são facilmente adaptáveis às culturas de outono/inverno. Isto apesar do histórico de regadios que aqui entrou pelas mãos de José Ervideira, o avô de José Palha, há cerca de 40 anos, tendo sido um dos pioneiros do regadio no Alentejo à boleia da construção da barragem da Vigia, logo após o período do 25 de abril.

"Aqueles oito pivôs foram uma revolução na agricultura regional e fomos os primeiros a produzir milho que viria a ser uma tradição de família", relata, para assumir que, mesmo assim, não precisou de pensar muito nos últimos tempos para mudar a agulha da produção à medida que a falta se foi avolumando nos últimos três anos.

"O nosso clima mediterrânico está vez mais parecido com África e há que tomar medidas sérias", reconhece o produtor, para quem só os regadios privados vão conseguir dar de beber às culturas mais exigentes em água que não são abrangidas pelo perímetro de rega de Alqueva.

Derrubar velhos preconceitos

A atual realidade agrícola "empurrada" pela seca está a deitar por terra um velho preconceito que vinha conotando a produção de cereais com uma atividade ultrapassada pela falta de tecnologia. "Há o conceito de que quem só faz cereais é quem não sabe fazer mais nada, quando de facto é uma cultura exigente com aspetos interessantes no mercado", diz José Palha, para quem a sua aposta na mudança de culturas é um dos exemplos do que começa a ser uma prática entre alguns produtores alentejanos como resposta à falta de chuva.

A própria Associação Nacional de Produtores de Cereais a iniciar a segunda edição do curso de formação técnica em cereais, onde o tema da adaptação à falta de chuva tem estado em foco, numa parceria com Instituto Nacional de Investigação Agrícola, Estação de Melhoramento de Plantas de Elvas e Instituto Politécnico de Beja, com o reforço de investigadores franceses.

E se no ano passado houve 25 formandos inscritos, este ano já são 30, tendo o curso o objetivo de adequar o itinerário técnico com o potencial económico da cultura de sequeiro ou de regadio.

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