segunda-feira, 16 de junho de 2014

“Era importante trazer o saber científico para a horticultura”

Paulo Leite, gerente da Primohorta


"Era importante trazer o saber científico para a horticultura"
Pôr as universidades e os produtores agrícolas a trabalhar em conjunto é a principal motivação que leva a Primohorta a participar nas Conferências do Montijo, que se realizam no próximo dia 19. Paulo Leite, gerente da empresa, defende que "os cursos deviam estar muito direcionados para a vertente de saber fazer, de experimentar e pôr em prática" e os produtores podem disponibilizar "toda uma estrutura para ensaio e experimentação, que é imprescindível para os universitários trabalharem". "O conhecimento é imprescindível em qualquer setor de atividade", assegura o responsável da Primohorta em entrevista ao "Setúbal na Rede", explicando que na agricultura, "sendo tão complexa e que abrange tantas áreas, é ainda muito mais".

"Setúbal na Rede" – Que mensagem pretende levar às Conferências do Montijo?
 
Paulo Leite – Há longo tempo que vimos falando sobre o quanto é importante criar nesta região uma relação prática com as universidades. As nossas universidades estão vocacionadas para formar indivíduos que no futuro terão uma carreira profissional, mas há um grande desfasamento entre aquilo que se aprende e o que se vai depois praticar. Era com base nessa constatação, e até a pensar na questão da segurança pública, que era importante refletir sobre isso. O agricultor vai trabalhando empiricamente através de experiências, ano após ano, com as tendências do mercado, mas era importante trazer o saber científico e técnico para o mundo da horticultura. Estamos sujeitos ao poder comercial das empresas de agroquímica, que são grandes multinacionais que têm a sua investigação, mas uma coisa é a prática de desenvolvimento de uma substância ativa e outra é a aplicação dessa substância ativa naquilo que comemos.
 
Enquanto horticultor sempre me incomodou se comemos um produto saudável ou não, porque também sou consumidor, e foi sempre uma questão que esteve na ordem do dia nesta profissão, mas tem-se caminhado a passos largos para outra atitude no mundo agrícola. Por isso, era importante, sobretudo em Portugal, em que as pessoas da área produtiva trabalham de costas voltadas umas para as outras, que as universidades orientassem os seus trabalhos em conjunto com os profissionais que estão a trabalhar no terreno. Os investigadores podiam recorrer ao nosso apoio, sentirem as necessidades dos profissionais e desenvolverem alguns trabalhos interessantes, não só do ponto de vista académico como para a prática da atividade.
 
SR – O que falha para que, como diz, os estudantes saiam das universidades desfasados do mundo real?
 
PL – Por muito que se aprenda na teoria é imprescindível a prática. Enquanto agrupamento de produtores temos sentido isso na pele, pois já contratámos inúmeros indivíduos que tiveram formação específica em horticultura e depois têm dificuldades enormes em se adaptarem ao mundo profissional. Algumas vingaram, estagiaram aqui na empresa e hoje estão bem inseridos na profissão, mas há imensos que nem têm capacidade para singrar na profissão, porque estavam completamente desfasados desta realidade.
 
Algumas universidades têm também baixado os patamares de exigência, pois muitos destes cursos ligados à agronomia e às técnicas agrícolas por vezes não são ministrados da melhor maneira, até porque muitos professores já não têm os conhecimentos devidos. Os docentes acabam por ser meros passadores de informação, baseados em livros e nada mais. Numa sociedade como a nossa, em que têm havido políticas no sentido da modernização e da exportação, é imprescindível saber como se fazem os produtos.
 
SR – Defende então que os produtores podem ajudar as universidades a formar melhores profissionais?
 
PL – Quanto mais não seja, pôr ao dispor toda uma estrutura para ensaio e experimentação, que é imprescindível para os universitários trabalharem. A Escola Superior Agrária de Santarém tem feito alguns trabalhos interessantes nesta área, mas tem sido um professor carola a desafiar meia dúzia de estudantes que também estão atentos aos problemas. Só que isto devia ser feito de uma forma assistida, continuada e profissional, pois os cursos deviam estar muito direcionados para a vertente de saber fazer, de experimentar e pôr em prática, para que os trabalhos de fim de curso não fiquem todos na gaveta, como acontece.
 
SR – Os produtores também gostavam de ter a ajuda das universidades?
 
PL – Sobretudo numa questão essencial que é o uso de produtos fitofármacos, cuja realidade do norte da Europa é completamente diferente da do sul e não há nada como fazer experiências e análises em relação à aplicação desses produtos. Esta empresa, por via dos processos de certificações, está a fazer centenas de análises aos produtos antes de entrarem nos mercados, para verificar se são identificados alguns resíduos dessas substâncias. Esse trabalho é urgente porque é a mais-valia que distingue o produtor, que não produz apenas quantidade mas que garante a qualidade intrínseca do produto.
 
SR – Que garantia o consumidor tem dessa qualidade dos produtos que consome?
 
PL – Quando andamos por esse país fora e vemos nos mercados ou na beira da estrada alguns vendedores, partimos do pressuposto da sua qualidade. Mas não há nenhuma garantia de segurança nesses casos, porque o mundo vegetal, tal como o animal, está repleto de vírus, de fungos e de uma série de doenças, e o agricultor, quando confrontado com essa situação, recorre a uma solução qualquer, sem ter os conhecimentos devidos para utilizar esses produtos.
 
É preciso desmistificar essa ideia da produção natural e tradicional, porque desde o final da segunda guerra mundial que os agroquímicos começaram a ser utilizados de forma intensiva para aumentar a produção e ajudar a debelar a crise. Até aí, vivia-se de uma agricultura de subsistência, respeitando os ciclos da natureza e havendo abundância ou fome conforme as condições o permitiam. Mas depois cometeram-se erros gravíssimos, aplicando todo o tipo de substâncias de qualquer forma, pelo que hoje somos todos geneticamente manipulados. Hoje, tudo o que se come, principalmente a partir da grande distribuição, está sujeito a normas minimamente exigentes que não dá para acreditar que se possa consumir um produto com substâncias que lhe possa pôr em causa a sua saúde. Onde continua a haver grandes irregularidades é em meios que estão fora das certificações. Um indivíduo que não tem a noção do que é um decilitro, um centímetro cúbico ou um milímetro, não pode oferecer garantias de segurança na aplicação dos tratamentos.
 
SR – As atividades rurais e a ciência são, mais do que nunca, aliadas?
 
PL – O conhecimento é imprescindível em qualquer setor de atividade, não nos podemos alienar dele pois é a única base de desenvolvimento. A agricultura, sendo tão complexa e que abrange tantas áreas, é ainda muito mais. Não basta repetir o processo para garantir os mesmos resultados, porque há muitos fatores físicos, químicos, mecânicos ou climatéricos que põem em causa todo o sucesso da operação. Eu próprio sinto uma permanente insegurança em relação a uma série de substâncias que utilizamos e que é preciso conhecer todas as suas implicações. Não escondendo as preocupações que resolvemos os problemas, é abrindo o livro e olhando para as páginas.
 
SR – O individualismo, como referia, é um obstáculo a esse desenvolvimento?
 
PL – Quando comecei nesta atividade, há mais de vinte anos, o individualismo era grotesco. Mesmo quando se criou este agrupamento foi uma dor de cabeça enorme. Não é por acaso que se criaram inúmeros pelo país e todos acabaram por desaparecer. Este vai resistindo, já sem o mesmo número de elementos que tinha na sua fundação, mas com uma área de produção maior, porque todos os que aqui se associaram tiraram benefício desta estrutura. Não só na componente comercial, mas na partilha do conhecimento, pois qualquer indivíduo que está associado a este tipo de estrutura é mais profissional e muito mais rico nas suas capacidades.
 
SR – Mas houve desistências ao longo do processo?
 
PL – Muitos aderiram porque estava na moda ou porque não queriam ficar de fora, mas sem saberem concretamente do que se tratava. O que é curioso é que todos os que saíram hoje não são profissionais da área. Todos eles, afinal, estavam desenquadrados, porque esta é uma atividade extremamente exigente, que requer muita dedicação e grandes riscos.
 
SR – A estrutura da Primohorta está estabilizada?
 
PL – Tem vindo sempre a crescer ao longo do tempo. Começámos por criar um processo de união da produção, depois fizemos o aluguer de uma estrutura onde centralizámos o processo e quando as coisas estavam consolidadas comprámos um terreno e construímos a nossa central. Hoje pode-se considerar uma empresa consolidada, que nunca teve prejuízos, tem crescido todos os anos e já fatura cerca de doze milhões de euros por ano, o que a torna numa empresa com alguma expressão no concelho.
 
SR – Vê potencialidades de crescimento?
 
PL – Sobretudo na possibilidade de atingir mais alguma capacidade de exportação, uma vez que trinta por cento da nossa produção vai para exportação, mas ainda podíamos conquistar mais alguns mercados. Podemos aumentar um pouco a produção e tentar canalizar a existente para outro tipo de mercados. As empresas mais importantes da grande distribuição em Portugal são nossos clientes e a nossa exportação está quase toda concentrada numa rede de supermercados na Alemanha, que tem uma grande exigência na certificação de qualidade dos produtos. Mas há que ser cada vez mais profissional e garantir mais segurança alimentar, porque se evoluíram as técnicas de produção, também evoluíram as técnicas de análise dos produtos e consegue-se hoje detetar substâncias que era impossível descobrir há cinco anos.
 
SR – A produção consegue ser toda escoada e garantir resposta à procura?
 
PL – Temos um plano de sementeiras e de colheitas. Todos os dias há alguém do grupo que semeia e todos os dias estão pessoas a colher, 365 dias ao longo do ano. Depois, porque a atividade não é feita debaixo de telha, estamos sujeitos às intempéries e o clima está cada vez mais incerto. Mas no caso de um problema desse tipo é a força e a vontade do homem que tenta repor a situação.

Pedro Brinca - 13-06-2014 10:27


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