segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Algarve recria "arca de Noé" das árvores de fruto

IDÁLIO REVEZ 16/12/2012 - 16:37
Direcção regional de Agricultura desenvolve projecto que revela
cheiros e sabores da fruta de outros tempos.


Já foram identificadas 86 variedades de amendoeiras ANTÓNIO PINTO

Cabrita Vieira é o que se pode chamar um agricultor que "sabe da
poda". No meio do campo, a enxertar, move-se como um cirurgião no
bloco operatório. "A ferramenta (faca de dois cortes paralelos) fui eu
que a fiz", afirma. Da operação resultam alfarrobeiras que, ao fim de
três ou quatro anos, dão fruto.



O agricultor/viveirista é um dos elementos que estão a colaborar com a
direcção regional de Agricultura para criar uma espécie de "arca de
Noé" do Algarve - um campo experimental onde se recolhem as espécies
tradicionais, em vias de extinção, procurando assegurar a sua
manutenção futura. Só no que respeita a figueiras, já foram
contabilizadas 92 variedades. Amendoeiras foram 86 e alfarrobeiras 41.

A recolha e a selecção, desenvolvidas por uma equipa de sete
agrónomos, começaram há cerca de um ano, prevendo-se que o programa
termine em 2015. Um trabalho "notável" é como o agricultor António
Neto o classifica, a pensar na preservação e multiplicação das
centenas de espécies que estavam em risco de se perderem.

De uma ponta à outra da região, os engenheiros agrónomos do Ministério
da Agricultua procuram encontrar árvores que sirvam de amostra. João
Costa, um dos membros da equipa, fala com entusiasmo do "fascínio" de
um projecto que tem por objectivo contribuir para "deixar para as
gerações futuras um património vegetal, criado e aperfeiçoado ao longo
dos séculos".

Os pêros de Monchique

A analogia com a "arca de Noé" é incontornável. "Os pêros (maçãs
pequenas) de Monchique, durante a Feira de Faro, perfumavam as ruas da
cidade", recorda. Esta e outras raridades, salienta, "estão a ser
recuperadas, destacando-se da massificação da fruta que chega de todo
mundo, sem cheiro nem sabor".

O Centro de Experimentação Agrária de Tavira, com a área de 36
hectares, junta a experiência à investigação científica. No mesmo
sentido, na Universidade do Algarve, Anabela Romano dirige uma equipa
que desenvolve, ao nível biotecnológico, um trabalho sobre a
propagação vegetativa in vitro. "Nem todos os enxertadores têm a mesma
precisão na mão", nota. Por isso é necessário criar um método que
garanta a "uniformidade genética" das variedades tradicionais.

O que aconteceu desde há décadas com a flora algarvia não é diferente
do que se passou um pouco por todo o país - campos desertos e árvores
abandonadas. Mas há agora um novo olhar para uma região que "plantou"
à beira-mar vivendas e apartamentos, onde dantes existiam
alfarrobeiras, figueiras e amendoeiras.

Numa zona perto do Algoz (Armação de Pêra), Cabrita Vieira dedica-se
ao cultivo das alfarrobeiras depois de ter trabalhado em citrinos
durante décadas. De resto, é a ele que os engenheiros da direcção
regional recorrem para fazer os enxertos desta espécie. "Aliás, até já
fui a Marrocos, num programa de cooperação entre os ministérios da
Agricultura dos dois países, ensinar a enxertar", acrescenta. Próximo
de Albufeira, António Neto observa as figueiras e amendoeiras, em fase
de hibernação, sublinhando os gestos das mãos com palavras de lamento.
"Portugal importa figo da Turquia, e nós temos aqui fruta tão boa",
observa. Virando-se para Norte, aponta para a montanha pedregosa e
comenta: "Plantaram-se pomares de citrinos, com subsídios, e o pomar
de sequeiro, em terrenos de boa qualidade, ficou abandonado".

Junto de uma amendoeira, aparentemente igual a tantas outras, descreve
as características da árvore. "Foi ela a mãe que deu uma das
variedades que estão em Tavira, a ser estudadas", gaba-se.

As variedades, explica João Costa, "costumavam receber o nome da
localidade ou do agricultor que as descobriu". Esta, por exemplo,
passou a ser conhecida como a variedade "Paderne". E assim, de enxerto
em enxerto (ou estacaria, no caso da figueira), reconstrói-se o
património genético de uma região que, mercê do clima, passou também a
produzir frutas tropicais, deixando esquecidas as romãzeiras,
nespereiras e figueiras.

Alfarrobas no Alentejo

O agrónomo salienta, no entanto, que as coisas estão a mudar. "Temos
uma nova geração de agricultores, virados para as culturas
tradicionais, e há novos pomares muito interessantes." Cabrita Vieira,
por seu lado, acrescenta que a procura de alfarrobeiras, que
antigamente se concentrava no Algarve, chega agora também do Alentejo.
Ao todo, afirma, já vendeu cerca de 15 mil para Mértola, Vidigueira,
Aljustrel.

A variedade que recomenda, de entre as quatro dezenas que tem no
viveiro, é a "cavi" [Cabrita Vieira], uma espécie que diz ter
resultado de "mais de cinco" experiências que fez. Sobre as suas
características, diz ser "equilibrada no tamanho e proporção do número
de sementes". Apesar das múltiplas aplicações do fruto - os alemães,
por exemplo, fazem um sucedâneo de cacau a partir da polpa -, a mais
frequente em Portugal consiste na sua utilização no fabrico de rações
para animais.

http://www.publico.pt/local/noticia/algarve-recria-arca-de-noe-das-arvores-de-fruto-1577650

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