terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Práticas leais do comércio - quem tem medo do mercado?


10 Fevereiro 2014, 12:24 por Miguel Gorjão-Henriques

A 25 de Fevereiro de 2014 entra em vigor o Decreto-Lei n.º 166/2013, que regula as práticas restritivas do comércio e visa assegurar "a transparência" e "o equilíbrio" das relações comerciais e negociais.
Importa ser claro: o novo diploma não tem por objectivo a concorrência. Não prossegue qualquer dos objectivos próprios de uma política de concorrência no contexto do mercado aberto, livre e interno em que Portugal se encontra. Quem tenha dúvidas, leia as palavras do prof. António Ferreira Gomes na recente conferência organizada pela Centromarca.

O Decreto-Lei n.º 166/2013 regula o comércio mas, creio, não usa meios adequados e proporcionais para atingir objectivos que são legítimos e louváveis. Além dos inúmeros problemas técnico-jurídicos que levanta e que vão limitar os seus efeitos (aplanáveis por uma consulta pública e uma maior qualidade legística), o diploma é um exemplo de uma concepção ideológica de regulação, vista por aqueles que, num esgar (pós-) marxista, trasladam todas as esperanças para o Estado regulador e "forte": o mesmo que tem cada vez menos meios e pessoal. E dizendo reconhecer "o direito fundamental à iniciativa económica privada", o legislador, num diploma todo ele dirigido a limitar a liberdade económica e contratual, usa a mesma cartilha – é dos livros – e diz o seu contrário para produzir o efeito de "épater le bourgeois". 

Todo o seu ser se dirige ao equilíbrio nas relações comerciais. E é verdade que nem tudo vai bem ao nível das práticas negociais do comércio entre empresas que se encontram numa relação vertical, onde há problemas reais e preocupações legítimas e dignas de atenção. Mas responde este diploma a esses problemas reais? 

Se o Direito visa resolver problemas, aqui são mais os que são colocados ou ignorados (v.g. poder de compra vs. poder de venda). Mas mesmo tendo apenas em vista o sector agro-alimentar, o que acontecerá se:

a) Os contratos de fornecimento em vigor não forem "revistos e compatibilizados" num ano? 

b) Com a crise, a redução da protecção social e o desemprego, não restar à distribuição, para garantir preços mais baixos ao consumidor, outra alternativa que não seja adquirir produtos a empresas não estabelecidas em território nacional ou produtos que venham de países terceiros à União Europeia? (o diploma não se aplica a esses produtos nem empresas, pelo que o objectivo de proteger o sector agro-alimentar pode assumir-se perversamente como uma medida destinada a apoiar o esforço exportador do sector agro-alimentar dos países fora da UE…).

c) Os produtores tiverem de colocar os seus produtos em cada loja, agora que não é possível cobrar por esses ou outros serviços que lhes são prestados no interesse de ambas as partes? 

d) Como é esperável, os custos de transacção aumentarem. Pense-se no regime da factura ou no regime especial de responsabilidade contratual (o comprador tem de demonstrar que a culpa é do fornecedor): haverá uma corrida a seguros e outros mecanismos, com os custos inerentes?

Urge perguntar: assegura este diploma o "level playing field"? Não. 

E quanto aos consumidores? Seria de esperar que, no contexto actual, se procurassem soluções que não afectassem o poder de compra dos consumidores. Mas o agravamento da ficção jurídica usada para definir o preço de compra efectivo e proibir a venda com prejuízo fornece um incentivo normativo a efeitos coordenados quanto aos preços, impede a passagem dos benefícios para os consumidores e, quando muito, liberta fundos para o investimento produtivo (ironia). 

Finalmente, números: De 2007 e 2012, a ASAE enviou para a AdC menos c. 33% de processos (fonte: AdC, 2013). E, de 2007 e 2012, a AdC aplicou um total de € 1,9 milhões em coimas por práticas restritivas do comércio. Mas, no novo diploma a coima que pode ser aplicada por uma única infracção é de 2, 5 milhões de euros! Atente-se: o valor das coimas aumenta 16666,66% (entre a lei anterior e a lei nova). 

Se é imperioso que o PIB, a procura privada e a confiança cresçam, permite este quadro normativo acreditar que a "capacidade empresarial para a captação e satisfação dos clientes da distribuição" vai encontrar uma via para favorecer os consumidores e, ao mesmo tempo, os fornecedores e produtores? 

Advogado (Sérvulo & Associados). O autor escolheu escrever na ortografia "antiga".

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