segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Viagem ao mundo cor-de-rosa da Sogrape

História

António Freitas de Sousa
23/08/12 00:05



Criar uma empresa exportadora em plena II Grande Guerra parece
loucura. Foi assim com a Sogrape, líder incontestada do mercado.

Nem administrador, nem adjunto da direcção, nem director-geral, nem
chefe de divisão. Nem ao menos escriturário. Ou telefonista. Ou
porteiro. Quando Fernando Guedes decidiu que Lisboa (estava
matriculado na Faculdade de Economia) não era uma cidade onde gostasse
de viver e preferiu regressar ao Porto e pedir ao pai para trabalhar
com ele na sua própria empresa, foi posto a lavar pipas. É um trabalho
pesado: é preciso entrar para dentro delas, raspar a borra do vinho
que já lá esteve armazenado - fica-se sempre um pouco zonzo com os
vapores que por lá circulam - lavá-las com água e pô-las ao sol a
secar; mas alguém tem de o fazer. Ou tinha: já não há aprendizes de
tanoeiro em lado nenhum mas, em 1952, quando Fernando Guedes pediu ao
pai, Fernando van Zeller Guedes, fundador da Sogrape, para entrar na
empresa, foi essa a função que lhe foi atribuída.

Para Fernando van Zeller Guedes, o mundo era uma espécie de diamante
em bruto e ao homem competia lapidá-lo na medida das suas
competências: o seu filho mais velho (de sete irmãos) não poderia
nunca administrar uma empresa de vinhos se não soubesse o que era uma
pipa.

Em plena guerra
Em 1942, o mundo estava a ser moldado à bomba. Os aliados e as forças
do eixo estavam a transformar o solo do planeta numa sucessão de
buracos atulhados de cadáveres e a economia da Europa não ia além da
troca de empréstimos de pagamento muito duvidoso por carregamentos de
armas das mais diversas espécies - não importava quais, desde que
matassem.

Fundar uma empresa exportadora nesta envolvente era o mesmo que lançar
um pedaço de ferro a uma tina de água e ficar à espera que flutuasse.
Contra o mais óbvio e a todos os títulos aconselhável racional de
negócio, Fernando van Zeller Guedes decidiu lançar uma empresa. De
vinhos e vocacionada para as exportações. Muniu-se do acordo de 15
amigos - que compuseram o primeiro elenco accionista da Sogrape - e
acantonou-se na ideia de lançar um produto de tal forma inovador, que
não desse margem a que passasse despercebido. Estava criado o Mateus
Rosé.

A Sogrape foi fundada no dia 22 de Junho de 1942 - uma semana antes de
Hitler lançar a campanha da Batalha de Stalingrado - e, para atingir a
estratégia determinada, Fernando van Zeller Guedes recorreu a duas
vias: às suas próprias ideias e ao enólogo francês Eugène Hellis. A
dupla adquiriu vinhos do Douro da produção de 1942 e Eugène Hellis
trabalhou-os da forma que entendeu (numa adega alugada em Vila Real),
ao mesmo tempo que van Zeller Guedes desenhava uma garrafa. A garrafa
- que viria a transformar-se num dos ícones do 'design' do século XX -
era verdadeiramente inovadora, é certo, e inspirava-se num cantil de
soldado, como também é claro. Mas não era nada disso que o fundador da
Sogrape tinha em vista: a garrafa era substancialmente mais pequena
que as tradicionais, o que obrigaria a que, num escaparate, ficasse
sempre à frente de todas as outras. Foi isso que sucedeu - não sendo
por isso fácil de determinar qual foi a mais genial das ideias: o
vinho de cor rosada, sabor doce e leveza garantida; ou o golpe
subliminar da garrafa anã.

Naqueles dias de chumbo, o mundo em geral, e os europeus em
particular, viviam numa espécie de festa permanente no meio dos
escombros e dos corpos retalhados dos amigos: sabendo que partir em
breve era a hipótese mais próxima, cada europeu dedicava-se a torná-la
o mais alegre (e enevoada) possível. Paris, como tantas outras
cidades, era uma festa - sobre a cidade ocupada, vale a pena ler a
auto-biografia de Simone de Beauvoir - que os manuais de psicologia
haveriam de esmiuçar nas décadas seguintes. Ou seja: afinal, havia
mercado para o vinho.

Os dias de paz trouxeram mais mercado e por isso vender vinhos passou
a ter um claro racional de negócios. Resultado: a concorrência
aumentou e, num sector onde a tradição já era o que ainda hoje
continua a ser (um instrumento de gestão), o Rosé passou a coleccionar
detractores. Desde 'xarope' a 'bebida para meninos do coro', o Mateus
Rosé aguentou todos os epítetos que lhe quiseram atirar e seguiu em
frente: no final da década de 1950 já vendia cinco mil caixas em
Inglaterra e chegava a cada vez mais mercados (atingiu a China em
1983) dos 125 que acabaria por 'coleccionar'. Quanto aos seus
detractores - dos que ainda sobrevivem - não há nenhum que cometa a
imprudência de não ter um rosé no seu 'port folio'.

Uma nova etapa
Fernando Guedes tinha entretanto deixado a pouco auspiciosa carreira
de tanoeiro e rumara a França, onde, na Faculdade Ciências da
Universidade de Dijon, seria um dos primeiros três portugueses a
diplomar-se em Enologia. Foi nessa condição que regressou à Sogrape,
onde, em 1957 - um ano depois de casar com Ana Mafalda Maria Antónia
de Mello Falcão Trigoso da Cunha Mendonça e Menezes - assume a
direcção técnica da produção.

O fôlego económico patrocinado pelo Plano Marshall e pelo
aprofundamento do Estado social - de que a Europa se anda agora a
despedir - levou a Sogrape a abrir um período de fortes investimentos
no crescimento. No início da década de 60, arranca o primeiro centro
de vinificação construído de raiz, na Quinta de Cavernelho (freguesia
de Mateus, Vila Real), e pouco depois, também sob a supervisão de
Fernando Guedes, dão-se início às obras de construção das modernas
instalações em Avintes (arredores do Porto). O jovem enólogo
aparentava ter mais apetência para liderar estratégias empresariais
que propriamente para compor lotes de vinho, pelo que deu entrada na
administração do grupo - onde viria a atingir o topo em 1987, já
depois da morte de Fernando van Zeller Guedes.

Será na década de 1980, já com forte participação de Fernando Guedes,
que se irá formar aquilo que é hoje parte substancial do grupo
Sogrape: uma agressiva política de aquisições e um agregado de marcas
razoavelmente imbatível e concorrencial, tanto na área do Vinho do
Porto como do vinho de mesa. Um exemplo: apenas com a aquisição da
A.A. Ferreira (em finais de 1987), a Sogrape tomou de assalto o topo
das vendas de Vinho do Porto e tornou-se dona do mais emblemático dos
vinhos de mesa nacionais, o Barca Velha.

Mas o grupo quis igualmente diversificar. Por duas vias: tomando
posições em diversas regiões demarcadas do país - uma estratégia
apenas timidamente seguida por uma ou outra empresa do sector - e
transformando-se no mais importante investidor português no sector
vitivinícola fora das fronteiras nacionais. É aliás, neste particular,
praticamente o único exemplo: há apenas uma outra empresa portuguesa a
produzir vinho fora do país, mais precisamente no Brasil, enquanto que
a Sogrape tem posições cada vez mais firmes na Argentina, no Chile, na
Nova Zelândia e em Espanha, num total estimado em mais de 1.500
hectares de vinha espalhados pelo planeta.

Um futuro que já começou
Uma empresa desta dimensão - é de longe a maior do sector em Portugal
- teria obrigatoriamente que ser alvo de cobiça externa. E esse foi um
dos problemas que, subitamente, entrou portas a dentro na Sogrape -
quando nada o fazia prevê - consubstanciando-se num novo accionista
com quem a família Guedes recusa sequer cruzar-se: o comendador Joe
Berardo.

Alavancado na sua Quinta da Bacalhoeira, o 'enfant terrible' do mundo
empresarial português dedicou-se há uns anos a 'disparar' em várias
direcções no sentido de acrescentar ao seu 'port folio' mais empresas
do sector dos vinhos. Entre promessas de aquisição dos 40% da Real
Companhia Velha que se encontram nas mãos da Casa do Douro e
afirmações que levavam a crer que iria comprar metade da região, o
maior coleccionador português de arte moderna e um dos maiores de
acções do BCP entrou 'sub-repticiamente' no grupo Sogrape, originando
um caso sério (para não se gastarem outros adjectivos) que anda pelos
tribunais.

Entretanto, Fernando Guedes - que se retirou da gestão executiva no
início do milénio por considerar que os seus três filhos, Salvador,
Manuel Pedro e Fernando, estavam habilitados a lapidar os seus
próprios mundo - descobre uma outra preocupação, de alguma forma
decorrente da anterior. Eis um excerto de um documento oficial do
grupo: "Já quanto ao futuro a longo prazo, Fernando Guedes não esconde
algum receio de que a passagem de testemunho para a quarta geração não
venha a ser tão fácil e pacífica como as anteriores". Mas não perde a
esperança de que a maioria do capital da Sogrape permaneça na família
- "gostava muito que isso acontecesse" - e que alguns dos seus dez
netos venham a mostrar capacidade e interesse para integrar os órgãos
de gestão da empresa, desde que cumpram um conjunto de regras de
acesso muito rigorosas que estão já fixadas. "As pessoas da família
devem exercer funções pelos seus méritos e não por herança", avisa.

Nada disso parece, para já, fazer parte das preocupações de Salvador,
actual líder executivo de um grupo que está prestes a ultrapassar pela
primeira vez a mítica barreira dos 200 milhões de euros de volume de
vendas.

http://economico.sapo.pt/noticias/viagem-ao-mundo-corderosa-da-sogrape_150532.html

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