domingo, 28 de dezembro de 2014

A filha de Américo Amorim que trocou a cortiça pelo vinho


28-12-2014 • Ana Catarina André e Susana Lúcio

O sonho repetia-se quase todas as noites. Luísa Amorim via-se num grande armazém de vinhos e de repente começavam a cair-lhe dezenas de garrafas na cabeça. "Era o peso da responsabilidade", diz. "É horrível uma pessoa olhar para uma quinta em plena produção, ter salários para pagar e nem um cliente a quem vender", conta a empresária, que em 2003 ficou responsável pela gestão da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, em Covas do Douro, Vila Real. A propriedade foi comprada pelo grupo Amorim em 1999. 
 
Nessa altura, a filha mais nova de Américo Amorim – o homem mais rico do País com uma fortuna avaliada em 4,3 mil milhões de euros segundo a Forbes – vivia angustiada com o negócio, que dava os primeiros passos como marca autónoma de produção vinícola. "Era um projecto fantástico, mas que valia zero se não fosse explorado", revelou à SÁBADO, durante um almoço em Sabrosa, Vila Real, em que comeu frango assado, um prato de pouco mais de 6 euros. Tinha tirado o dia para visitar famílias carenciadas ajudadas pela associação que fundou, a Bagos d'Ouro.

Durante três anos, entre 2005 e 2008, viajou duas semanas por mês para conquistar mercados. "Nem sei como consegui. Queria superar aquele desafio", diz Luísa Amorim, de 41 anos. O primeiro contrato no estrangeiro foi o mais difícil. "Era um cliente belga. Foi o que me comprou mais barato até hoje. Espremeu-me um bocadinho e eu cedi. Era inexperiente e queria muito vender." Três anos depois, conseguiu desfazer o negócio – estava a perder dinheiro.
 
Vantagens de não ser enóloga 
Hoje a Quinta Nova, que este ano está a comemorar 250 anos (o aniversário deu origem ao livro 250 Anos de Histórias), exporta para 27 países, entre os quais Singapura, Uruguai, Estados Unidos e China. 
Em 2013, a propriedade de 120 hectares teve uma facturação de 2 milhões de euros. Nesse período, três dos seus tintos foram incluídos na lista Best 2013 da Wine Advocate, a revista do conceituado crítico norte-americano Robert Parker.

Ter uma quinta no Douro era uma "vontade antiga" da família Amorim. "O grupo já tinha entrado no mundo do vinho em termos de participação financeira, mas nunca na produção vitivinícola", explica Luísa, formada em Hotelaria e Marketing. Por isso, em 1999, a aquisição da Burmester, conhecida empresa de vinho do Porto que na época detinha a Quinta Nova, foi quase "natural". Luísa ficou então responsável pelo departamento de marketing (tinha acabado há pouco tempo os estudos na Universidade Califórnia, EUA). 
Mais tarde, em 2005, os Amorim venderam as caves e as marcas da Burmester aos espanhóis da Sogevinus e ficaram com a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo e a Quinta de S. Cibrão, em Sabrosa.

Luísa, que em miúda queria ser médica, ficou à frente deste património. Afastou-se da corticeira, o ramo tradicional da família (mas ainda mantém assento no conselho de administração da holding) e concentrou-se no vinho. "O facto de não ter um pai enólogo foi uma vantagem. Fazia perguntas a toda a gente. Não vou dizer que era desbocada, mas era directa e as pessoas achavam graça", recorda, dizendo que Américo Amorim apenas "apadrinhou" o projecto. "Li imenso sobre vinho, sobre o sector, sobre o Douro e foi assim que, ao fim de quatro anos, estava minimamente formada." Nunca estudou enologia. Nunca quis.

Nos primeiros tempos no Douro, conversou com especialistas. "Pedi aconselhamento sobre a linha de produtos e toda a gente me disse para começar apenas com dois rótulos (o Reserva e o Colheita). Achei que era pouco – isso não daria para preencher o portefólio de um importador – e coloquei quatro no mercado", diz, considerando que esse é um dos segredos do sucesso.

Aliás, a imagem da marca é uma das preocupações. "Reconheço que sou um bocado chata com as propostasde design dos produtos", afirma a directora executiva, que gosta de pintar e desenhar nos tempos livres. "Tinha imenso jeito em miúda." 
Recordando a infância, diz que foi uma criança feliz. "O meu pai às vezes levava clientes lá a casa para poder estar mais com a família. Era a única diferença." E acrescenta: "Ele não tem hobbies. Acho que o hobby dele é trabalhar. Eu gosto de decoração, viagens e jardinagem."

No trabalho, Luísa é competitiva. Além de apostar na criação de diversas gamas de vinhos (em 2009, eram quatro, hoje são seis), em 2003 investiu mil milhões de euros na modernização da adega. "Passou a ter mais capacidade de produção e a ser 100% controlada em termos de temperatura, o que é fundamental para a fermentação do vinho", explica.

A área da vinha também aumentou: tinha 35 hectares, hoje tem 85. Há cepas quase centenárias. "São uma pequena parte", diz, reconhecendo que no início da carreira o apelido Amorim era "um peso". "É-se sobrevalorizado ou desvalorizado." Actualmente, já não se incomoda com isso e assume que o nome contribuiu para a criação, em 2010, da Bagos d'Ouro, associação de solidariedade que ajuda crianças desfavorecidas na região do Douro. "Como mãe, este projecto é importantíssimo para mim", diz Luísa, que tem duas filhas pequenas.
 
E vão 250 anos de história 
A Quinta Nova passou pela mão de algumas das famílias mais ilustres do País, como é recordado no livro 250 Anos de Histórias, agora publicado (ver caixa). Em 1764, ano em que foi construída a grande adega e iniciada a produção de vinho, a propriedade era de António Araújo Gomes, ilustre negociante do Porto. Antes, tinha estado nas mãos das Casa Real Portuguesa.

Ao longo de 160 páginas, recordam-se algumas das tradições. Por exemplo, no século XIX os homens que transportavam as pipas de vinho para o Porto paravam junto à capela de Nossa Senhora do Carmo, situado na margem do rio Douro. Ajoelhavam-se no convés dos rabelos, barcos típicos do Douro, e com cruzes e amuletos pediam misericórdia a Nossa Senhora. Uns metros adiante, passariam por dois pontos críticos do caudal do rio: a Caxuxa e o Olho de Cabra, onde morriam dezenas de pessoas. O fenómeno deu origem ao ditado: "Quem a Caxuxa mal desce, no Olho da Cabra padece". Os que escapavam ainda tinham uma viagem de três a 10 dias.

Tradicionalmente vista como uma herdade de produção vinícola, a Quinta Nova investiu no enoturismo quando Luísa Amorim assumiu a direcção. "Cheguei ao Douro e vi que não se passava nada. O enoturismo era feito nas tradicionais caves de vinho do Porto mas, na região, não havia muitas casas que explorassem o turismo associado ao vinho." Hoje, a quinta disponibiliza provas de vinhos e passeios pedestres. Tem também o primeiro hotel vínico do País, instalado numa casa senhorial oitocentista. 

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