terça-feira, 8 de setembro de 2015

«Falta uma abordagem coerente e integrada à administração do recurso solo»



 08 Setembro 2015, terça-feira  Ana Clara Agroflorestal

Carlos Alexandre, presidente da direção da Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo (SPCS), fala sobre o Ano Internacional dos Solos 2015 e não tem dúvidas: «está por fazer uma avaliação geral da degradação que os solos do país sofreram ao longo da história». O responsável adianta ainda que «falta uma abordagem coerente e integrada à administração do recurso solo, a nível nacional, regional e local».
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Agronegócios: Qual a importância deste Ano Internacional dos Solos, globalmente mas também para Portugal?
Carlos Alexandre: A declaração pela Organização das Nações Unidas (ONU) de 2015 – Ano Internacional dos Solos – constitui uma oportunidade para chamar a atenção para a importância vital do solo. Segundo as estatísticas da FAO - Food and Agriculture Organization da ONU, o solo sustenta cerca de 99% de toda a produção de biomassa do mundo – destinada à alimentação humana e animal, à produção de fibras vegetais com diversas aplicações industriais, à bioenergia, à obtenção de produtos farmacêuticos e outros – o que dá bem a medida da nossa dependência extrema deste recurso. Mas a nossa dependência do solo é ainda mais profunda, uma vez que ele desempenha outros serviços ou funções ecológicas insubstituíveis, como é o caso do seu papel na reciclagem dos materiais orgânicos e, portanto, em quase todos os ciclos biogeoquímicos (como o ciclo da água, do carbono e do azoto, para referir apenas os mais relevantes para as alterações climáticas); o conjunto de organismos que vivem no solo (dos macro aos micro) constitui também uma imensa reserva de biodiversidade; o solo pode ainda conservar materiais e informação de enorme interesse científico, cultural, artístico e religioso. Sem solos e sem as funções que eles desempenham, o mundo seria completamente diferente do que conhecemos e, seguramente, muito mais pobre de vida. Em geral ninguém quer ver degradada a região onde nasceu, onde cresceu ou onde vive. No entanto, nem sempre temos a consciência de que cada paisagem, com toda a sua riqueza natural, só se manterá enquanto se conservar o solo que a sustenta. Um dos objetivos mais importantes do Ano Internacional dos Solos, tanto a nível global como nacional, é consciencializar a sociedade sobre a sua dependência do solo e sobre a importância vital de proteger este recurso. No fundo, aplica-se também ao solo o que disse Baba Dioum (1968) acerca do ambiente: "no final, conservaremos apenas o que amamos; amaremos apenas o que compreendemos; e compreenderemos apenas o que nos foi ensinado".

AN: Falando dos aspetos vitais – para a Agricultura, floresta e sustentabilidade dos ecossistemas – o nosso país tem tratado bem os nossos solos?
CA: Está por fazer uma avaliação geral da degradação que os solos do país sofreram ao longo da história. A ocupação humana do território e o seu aproveitamento para a agricultura, a silvicultura e o pastoreio implicou sempre a remoção da cobertura de vegetação natural e, por regra, contribuiu sempre para uma maior degradação do solo, principalmente por redução da matéria orgânica e da biodiversidade do solo, aumento da compactação e aumento da perda de solo por erosão hídrica. O nosso país tem uma longa história de ocupação humana que deixou marcas na paisagem e, necessariamente, também nos solos. Os primeiros sinais de desflorestação extensiva no território português são anteriores a 3 000 A.C. Desde essa época o uso intensivo do fogo para aumentar as áreas de pasto e as áreas agrícolas, bem como a exploração da madeira para lenha, carvão e todo o tipo de construção, culminou numa redução drástica das áreas florestais que, segundo alguns autores, terá chegado a valores mínimos de pouco mais de 10% do território em meados do século XIX. O enorme crescimento demográfico do país, em especial durante o século XX (entre 1920 e 1960 a população passou de 6 para 9 milhões) aumentou a pressão para expandir as áreas de produção de cereais e levou à ideia de converter o Alentejo no celeiro do país. Esse movimento ganhou expressão na lei de Elvino de Brito em 1899, conhecida por "lei da fome" e prosseguiu com a campanha do trigo de 1929, que levou a um forte aumento da área de produção de cereais, especialmente entre os anos 40 e 60 do século passado (de menos de 40% para cerca de 55% do território). A par da expansão da área agrícola, a utilização crescente de maquinaria permitiu a intensificação de técnicas de cultivo tradicionais com mobilizações do solo mais frequentes e mais profundas. A fatura de degradação dos solos do Alentejo, e do país, ao longo do século XX não é fácil de quantificar, mas originou muitos vestígios, alguns que foram documentados e vários que ainda são identificáveis. Os efeitos dessa degradação vão perdurar por muitas centenas de anos. Os solos demoram milénios a formar-se (1000 a 2000 anos para formar apenas 10 cm de espessura nas regiões temperadas) mas podem degradar-se em poucos anos, ou até em poucas horas. No nosso país, em que os solos de qualidade são escassos e em que muitos já têm um longo historial de uso, é vital para o nosso futuro incluir a preservação deste recurso nas prioridades nacionais, tanto pela promoção de medidas de gestão adequadas a cada tipo de uso, como na definição dos critérios de alocação dos usos aos solos, isto é, nos critérios adotados para o ordenamento do território.
Medidas

AN: Que políticas considera urgentes tomar nesta matéria?
CA: Em consequência da sua natureza multifuncional o solo interage com várias políticas, principalmente as do território, do ambiente e da agricultura. Talvez por esta diversidade de interesses, falta uma abordagem coerente e integrada à administração do recurso solo, a nível nacional, regional e local. Para tal seria necessário considerar dois tipos de medidas: no âmbito da administração e no âmbito da valorização e da proteção dos solos, estas últimas adaptadas aos principais tipos de usos do solo, desde as áreas mais sujeitas a expansão urbana até às áreas de reservas naturais, passando por áreas agrícolas e florestais com níveis de intensificação muito variados. Exemplificam-se algumas medidas para cada um dos tipos.
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Medidas no âmbito da administração dos solos do país:
- Concluir o reconhecimento dos solos do país, atualizar e harmonizar a sua cartografia numa escala âmbito nacional (1:1.000.000 ou 1:500.000).
- Definir indicadores do estado dos solos do país, programar e implementar a sua monitorização de modo a responder a compromissos internacionais, por exemplo, sobre o stock de carbono e os níveis de degradação do solo.
- Criar um sistema de informação dos solos de Portugal que possa reunir e disponibilizar informação à escala nacional, nomeadamente a resultante das medidas anteriores.
Medidas de valorização produtiva e de proteção do solo:
- Valorizar as ações de conservação do solo, através de instrumentos de apoio e de condicionalidade eficazes, alargando-as a outras práticas para além do enrelvamento e da não mobilização do solo, nomeadamente a práticas eficazes, simples de implementar e de verificar como, por exemplo, a conservação da vegetação das linhas de escoamento naturais, desde os vales aos alto das encostas.
- Apoiar a manutenção de uma rede mínima de produtores de cereais e de outras culturas alimentares básicas, em terras de boa aptidão para essas culturas. Manter e reforçar a defesa dessas terras vitais de que é exemplo a RAN. Promover a investigação e o desenvolvimento visando uma gestão mais sustentável desses sistemas nos nossos condicionalismos ambientais.
AN: Como olha para a importância da criação da Parceria Portuguesa para o Solo?
CA: Esta parceria começou por ser uma iniciativa da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR) e da SPCS, à qual aderiram várias outras instituições (ver lista atualizada de aderentes). Nos últimos 30 anos assistiu-se a uma progressiva e substancial redução de meios humanos e materiais nos serviços que tutelam o recurso solo no País. Esta evolução deu-se em contraciclo com o crescente reconhecimento da importância do solo a nível europeu e global. O papel do solo na produção agrícola e florestal, mas também na mitigação das alterações climáticas e na conservação da biodiversidade, traduz-se numa procura de informação cada vez mais detalhada e de conhecimento cada vez mais aprofundado sobre este recurso. A Parceria Portuguesa para o Solo visa congregar os esforços de entidades, públicas e privadas, interessadas na valorização e na proteção do recurso solo. Procura-se assim criar massa crítica, dispersa por várias instituições, para discutir e promover iniciativas para um melhor aproveitamento dos solos do país.
Sistemas produtivos mais sustentáveis

AN: De que forma temos sabido sensibilizar e dinamizar a sociedade em geral para uma utilização segura do recurso solo?
CA: Temos sabido pouco. É necessário aproveitar melhor os nossos solos, não apenas sob a perspetiva da produção agrícola, florestal ou pecuária tradicionais, mas em todas as suas componentes multifuncionais. Para isso é indispensável a investigação e o desenvolvimento de métodos de gestão que garantam sistemas produtivos mais sustentáveis. Garantir a sustentabilidade destes sistemas significa dar prioridade não apenas à produção mas também à proteção do solo, de modo a permitir que as gerações futuras se possam continuar a sustentar dos mesmos solos que nós. No entanto, mais conhecimento e melhor formação dos agentes mais diretamente envolvidos no uso do solo – agricultores, técnicos e investigadores – não diminui a nossa obrigação de informar e consciencializar todos os cidadãos da sua dependência do solo, e de como todos temos o direito, e até o dever, de exigir que o aproveitamento deste recurso não se faça à custa da sua degradação.
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AN: Fala-se muito da importância do solo na produção e qualidade dos alimentos, em matéria de segurança alimentar futura. Como agir de forma célere e eficaz, passando dos discursos à prática?
CA: Prevê-se que a população humana aumente dos atuais cerca de 7 mil milhões para mais de 9 mil milhões de habitantes em 2050. Em consequência, aumentará a pressão sobre o solo enquanto recurso indispensável para satisfazer muitas das nossas necessidades. À escala global tende a aumentar também a competição por diferentes usos da terra, incluindo usos não alimentares que algumas sociedades conseguem pagar melhor do que muitas outras podem pagar pelos seus bens alimentares básicos. Com as perspetivas de aumento da procura e sabendo-se que as terras agrícolas são limitadas, grandes instituições públicas e privadas têm vindo a assegurar reservas de terras para garantir as suas necessidades de produção futura. Por outro lado, tudo aponta para que a ocorrência de eventos extremos mais frequentes e mais intensos seja o traço dominante das alterações climáticas, aumentando a incerteza sobre toda a produção agrícola. Neste contexto, a conjugação do aumento gradual da procura de culturas alimentares básicas com o aumento da irregularidade da produção à escala global, aumenta o risco de ocorrência de anos de produção deficitária relativamente às necessidades e, portanto, o risco de fortes subidas nos preços. Nos últimos anos, Portugal tem vindo a alterar substancialmente o seu perfil de produção agrícola, adequando-o melhor às suas condições edafo-climáticas e melhorando a sua competitividade externa em várias fileiras, nomeadamente de culturas perenes (olival, vinha, frutícolas diversas). Sob muitos aspetos este tem sido um processo positivo. Por outro lado, a área de solo arável do país (culturas anuais e prados temporários) é das mais baixas da Europa (0,1 ha por habitante) e, como se sabe, o país tem, também, uma enorme dependência externa de culturas alimentares básicas, principalmente cereais, em que praticamente nunca foi autossuficiente nem se justificaria que o procurasse ser atualmente. No entanto, as incertezas referidas acima justificariam que se procurasse garantir uma rede mínima de sistemas produção de culturas alimentares básicas, em especial para a produção de cereais.
AN: No final deste ano, com o fim das celebrações do Ano Internacional dos Solos, que balanço gostava que fosse feito?
CA: Gostaríamos que fossem atingidos alguns dos principais objetivos definidos pela ONU para o Ano Internacional dos Solos, tanto a nível global como nacional, nomeadamente:
- Uma maior consciencialização da sociedade e dos decisores públicos sobre a profunda importância do solo para a vida humana;
- O reforço da capacidade de recolha de informação sobre o solo e da sua monitorização em todos os níveis (global, regional e nacional);
- Um maior apoio a políticas e ações efetivas para a gestão sustentável e a proteção dos solos;
Para além de vários eventos, alguns já realizados e outros previstos, em que diversos membros da SPCS têm tido um papel ativo, gostaríamos que algumas ações pudessem perdurar depois de 2015 – Ano Internacional dos Solos. Neste sentido a SPCS promoveu a tradução para português da publicação "Solos – À Conquista do Crachá" da YUNGA e da FAO/ONU, destinada a professores e alunos do 1º, 2º e 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário. Este livro está disponível em formato pdf aqui.
AN: Falando da Sociedade, que atividades constam da vossa atuação e quais os vossos principais objetivos? Quando foi criada?
CA: A SPCS foi criada no início da década de 1960, mas os seus estatutos só foram aprovados oficialmente em 1973. A SPCS é uma associação portuguesa de indivíduos e entidades, interessados no estudo, utilização e proteção do solo. Entre outras iniciativas, a SPCS realiza regularmente Encontros Anuais e, numa parceria com a Sociedad Española de la Ciencia del Suelo (SECS), organiza Congressos Ibéricos de 2 em 2 anos, alternadamente em Portugal e em Espanha. O próximo Congresso Ibérico das Ciências do Solo será em2016 (CICS 2016), no Instituto Politécnico de Beja, envolvendo, para além das duas sociedades citadas, também a Escola Superior Agrária de Beja (ESABeja), o Centro Operativo e de Tecnologia de Regadio (COTR) e a Associação Portuguesa de Recursos Hídricos (APRH). Este congresso dará especial enfoque ao papel vital dos recursos solo e água para a valorização e a sustentabilidade do regadio no nosso País.

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