quarta-feira, 14 de março de 2012

"A forma como produzimos comida é literalmente insustentável"

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Publicado em 11/03/2012
Charles Godfray, professor da Universidade de Oxford, responsável pelo
grupo de peritos escolhidos pelo Governo britânico para pensar as
mudanças que a alimentação e a agricultura vão sofrer nas próximas
décadas, esteve em Lisboa para fazer a primeira conferência do ciclo
que a Fundação Gulbenkian e o PÚBLICO dedicam ao Futuro da
Alimentação. Ao PÚBLICO falou do pouco que sabemos sobre a forma de
lidar com a comida, do muito que a desperdiçamos, das estratégias
nacionais e europeias e do que vamos comer no futuro.
A carne artificial vem aí? Ele, com imensa ironia, diz que já se
habitou a ser associado à carne artificial, depois de um jornal o ter
citado a dizer que esta era o futuro, e que, afinal, quem sabe, o
futuro pode sempre surpreender-nos.

O sistema alimentar mundial está a atingir um limite? Conseguiremos
alimentar o mundo daqui a 20 ou 30 anos?
Se olharmos para os preços dos alimentos nos últimos 20 ou 30 anos,
vemos que a comida nunca foi tão barata. Nós, no Ocidente rico, nunca
gastámos tão pouco em comida. Mas assistimos a um período de
volatilidade nos preços dos alimentos nos últimos três ou quatro anos.
Isto está a desencadear o que poderá ser uma mudança no sistema
alimentar.
A população mundial está a aumentar - provavelmente, em meados do
século, teremos entre nove e dez mil milhões. E vão ser mais ricos,
especialmente nos países em desenvolvimento, China, Índia, e quanto
mais rico se é mais se deseja uma dieta variada, alimentos que exigem
mais recursos para serem produzidos, em particular carne. Vamos
assistir a um período de stress sobre o sistema alimentar: maior
procura, ameaças ao abastecimento.
A forma como produzimos comida neste momento é literalmente
insustentável. Se continuarmos a produzir da forma como o fazemos,
estaremos a pôr em causa a nossa capacidade para produzir no futuro.
Além disso, há ainda mil milhões que vão para a cama com fome. Os
progressos que tínhamos conseguido na redução da fome mundial estão a
começar a parar em grande parte por causa dos preços da comida. Há
ameaças reais ao sistema alimentar nos próximos 20 ou 30 anos.
O que está por detrás das súbitas subidas dos preços dos alimentos?
Não há consenso sobre isso. Das grandes tendências, acabámos de falar:
o aumento da procura, sobretudo da China. Mas há outros factores: a
quantidade de comida que os países têm armazenada tem estado num nível
muito baixo. Há ainda o facto de, nos últimos dez anos, termos
dedicado cada vez mais terra agrícola à exploração de biocombustíveis,
de uma forma que não resolveu nenhuma das emissões de gases de efeito
de estufa e teve resultados negativos para a produção de comida.
Por fim, tivemos a crise financeira e muito dinheiro de investidores
desviou-se do mercado imobiliário e algum dele entrou em mercados de
matérias-primas alimentares. Admitiu-se que a especulação nesta área
tivesse contribuído para a volatilidade dos preços. Mas penso que não
foi uma das causas principais.
Defende que abandonemos os biocombustíveis?
Não acho que devamos abandoná-los, mas devemos ser muito mais
sofisticados na forma como olhamos para eles. Há duas grandes razões
para que a Europa e os EUA produzam biocombustíveis: uma é a segurança
energética, a outra a ambiental. Na minha opinião, os custos e
benefícios ambientais foram mal avaliados. Se usamos para
biocombustíveis um pedaço de terra que poderia servir para a
agricultura, de onde virá a comida que teria sido produzida ali?
A União Europeia, que, no início, teve uma atitude bastante tonta em
relação aos biocombustíveis, está agora mais sofisticada. Mas
preocupa-me que não estejamos a ver a questão correctamente.
Os países devem ter como meta, na medida do possível, a
auto-suficiência alimentar?
Temos que pôr a globalização a funcionar de uma forma benéfica para a
segurança alimentar. No Egipto, por exemplo, a auto-suficiência não
faz qualquer sentido. Tem uma enorme população e importa mais trigo do
que qualquer outro país. A globalização tem que trabalhar de forma a
beneficiar países como o Egipto ou Singapura, que não conseguem
produzir comida suficiente. Por outro lado, há países como a Ucrânia e
o Brasil, que produzem mais comida do que a que conseguem consumir. Se
pensarmos como vamos alimentar nove ou dez mil milhões, temos que ter
em conta estes "cestos de pão".
O sistema tem que trabalhar para isto: para que o Egipto possa ser
alimentado e para que a Ucrânia e o Brasil possam colocar comida no
mercado alimentar.
Em Portugal, discute-se agora a necessidade de reduzir a dependência
alimentar do exterior. Qual a melhor estratégia?
Temos o mesmo debate na Grã-Bretanha - devemos ou não ter uma política
de auto-suficiência? As nossas políticas agrícolas estão distorcidas
pela Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia.
Gostaria que a política europeia não evoluísse para o estabelecimento
de objectivos ou metas para produzir determinadas quantidades de
comida, mas para a transformação dos nossos sistemas agrícolas,
tornando-os mais eficazes. Os desafios não vão ser os mesmos dos
últimos 30 anos, que tinham a ver com a forma como apoiamos as nossas
comunidades rurais quando estamos a produzir demasiada comida. A
questão agora é como tornamos as nossas comunidades rurais mais
eficazes.
Mas não é o mesmo em todo o lado, e acho que vocês em Portugal e nós
no Reino Unido temos que olhar para a nossa terra como capaz de
produzir produtos muito diferentes - comida, mas também serviços de
ecossistemas, como a purificação da água, biodiversidade. Alguns dos
sistemas agrícolas em Portugal são maravilhosos, conheço-os porque
faço observação de pássaros aqui. As enormes quantidades de dinheiro
que gastamos hoje na PAC podem ser usadas de forma mais eficaz para
produzir um mosaico de diferentes tipos de terra produzindo coisas
diferentes.
E a UE está pronta para dar esse passo?
Não estou convencido de que esteja a avançar para maior
sustentabilidade na próxima ronda da PAC.
Existe um enorme desperdício de comida tanto no mundo rico como nos
países pobres?
Calcula-se que seja de cerca de 30 por cento. Nos países pobres, a
maior parte do desperdício acontece nos terrenos agrícolas, no
armazenamento, na cadeia alimentar. E isso é um problema de
desenvolvimento.
Nos países ricos, é diferente. Na Europa e nos EUA, muita comida é
desperdiçada em casa, nos restaurantes e na indústria dos serviços
alimentares, escolas, hospitais. As nossas mães ou avós ficariam
horrorizadas com o pouco que sabemos sobre como manter comida mais
tempo, como a comprar melhor. Há aí uma questão educacional, de
literacia alimentar. E suspeito que isto tem em parte a ver com o
facto de a comida ser tão barata. Se houver um aumento da pressão
sobre a comida, parte desse desperdício desaparecerá.
Acha que devíamos dar mais valor à comida? Isso deveria começar na escola?
Sim, acho que deveria ser introduzido nas escolas. Há estatísticas
preocupantes no Reino Unido sobre as crianças não perceberem que a
carne vem dos animais, pensarem que vem dos supermercados. Acho muito
importante que tenhamos uma discussão mais alargada e mais sofisticada
sobre comida.
Gosto de comparar com o tabaco. Há 60 anos que sabemos que o tabaco
mata, mas só nos últimos dez anos é que os governos foram autorizados
pelos seus cidadãos a tomar algumas medidas drásticas, que seriam
inacreditáveis há 10 anos. Em relação ao sistema alimentar, julgo que
não poderão ser tomadas medidas drásticas neste momento, porque a
sociedade civil não as legitimará. São desafios que precisam de
décadas.
Pode dar um exemplo?
Há tipos de comida que têm um impacto muito grande no ambiente e
muitas vezes na saúde, como alguns tipos de carne. Não quero dizer que
toda a carne é má, mas há carne que tem um custo ambiental na produção
e que é má para a saúde. Gostaria de ver os governos tomar medidas
mais activas para desencorajar as pessoas a comer esse tipo de comida.
Vemos um pouco isso na Dinamarca, onde comidas com mais gordura têm um
imposto maior. Gostaria que fosse mais difícil, por exemplo, anunciar
alimentos menos saudáveis e mais prejudiciais para o ambiente.
Uma forma seria reduzirmos a quantidade de carne que comemos, mas isso
não é fácil...
O consumo de carne está a diminuir lentamente na Europa. E nos EUA não
está a aumentar - acho que seria fisicamente impossível os americanos
comerem mais carne do que a que comem. Na China, está a explodir. Na
Índia, não está a subir como na China. Todos temos que tomar decisões
sobre a comida que comemos. Mas isso não será suficiente. Será preciso
acção regulatória do Governo e acções do sector privado. E, para isso,
a sociedade civil terá que fazer um debate.
Sentimos que nas últimas décadas a comida perdeu sabor e hoje fala-se
muito na recuperação de sabores perdidos e da importância da
diversidade alimentar.
Algumas das formas como produzimos comida, sobretudo comida barata,
fazem com que não seja tão saborosa. Eu, como escolha pessoal, estou
disposto a gastar mais dinheiro para comprar carne ou vegetais que
tenham mais sabor. Mas eu tenho o luxo de poder fazer isso.
Um dos grandes desafios é produzirmos comida saborosa e mantê-la
suficientemente barata para que as pessoas que não têm muito dinheiro
possam comprá-la. Temos que pegar no conhecimento dos artesãos e do
movimento orgânico, mas juntar também alguma ciência.
Uma coisa que não sei se vai acontecer é a carne artificial. Há dois
anos, fui citado num jornal britânico, dizendo que a carne artificial
ia ser muito importante. Era engano, tinha sido um colega meu. Mas
continuam a citar-me, e começo a pensar que é bom que pensem que eu
disse isso, porque acredito que vamos ver carne artificial talvez
daqui a dez anos, de certeza daqui a 20. E é possível que seja
saborosa... não sei.
Público 2012-03-10
http://www.mafrahoje.pt/pt/articles/-a-forma-como-produzimos-comida-e-literalmente-insustentavel-

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