sábado, 13 de junho de 2015

A empresa secreta que produz quase tudo o que se come

A Cargill fabrica adoçantes para a Coca-Cola, chocolate para a Mars e hambúgueres, óleo e nuggets para a Mcdonald's

15 Fevereiro 2015 • SÁBADO

A cidade de Yefremov é tudo aquilo que se poderia esperar de uma localidade industrial soviética em decadência. Os edifícios estão a cair aos bocados e as estradas esburacadas. Matilhas de cães vadios perseguem velhos carros russos Lada. É um local inóspito e cinzento, embrenhado num odor permanente a fermento, por causa da fábrica de vodka das redondezas. A cidade nunca mais foi a mesma desde a queda da União Soviética, que arrastou consigo a principal empregadora da zona, uma fábrica estatal de borracha. "Metade da população foi-se embora quando a fábrica fechou", diz Nikolai, 70 anos, condutor de camiões reformado. Tem a boca cheia de dentes de ouro e caminha com as compras pela Rua do Exército Vermelho. "O desemprego ainda é muito elevado. E as nossas reformas são muito baixas."

Mas a cidade tem pelo menos uma coisa a seu favor: os McNuggets. No Verão de 2013 abriu em Yefremov uma fábrica que produz toda a carne de frango processada para os 300 restaurantes McDonald's na Rússia. É a mais recente novidade do complexo de produção alimentar que fica perdido entre Moscovo, a cerca de quatro horas para norte, e lado nenhum. Todos os dias, peitos de frango, importados na maioria do Brasil, são despejados para máquinas que cortam, panam, cozem a vapor, fritam, congelam, embalam a vácuo e empacotam os nuggets. A cada oito horas, esta linha produz um milhão de McNuggets. Poderíamos interrogar-nos sobre as razões que levaram a McDonald's a escolher um inferno industrial para a sua McNuggetgrado. Na verdade, não escolheu. A decisão foi da maior empresa privada da América, da qual provavelmente nunca ouviu falar, mas à qual certamente já deu dinheiro.

A Cargill é a maior produtora de ingredientes alimentares do mundo. Fabrica os adoçantes para a Coca-Cola e o malte para a cervejeira MillerCoors, frango para a Asda, chocolate para a Mars e hambúrgueres, óleo alimentar e os McNuggets para a McDonald's. É a terceira maior embaladora de carne do mundo e a maior distribuidora de cereais, que envia para qualquer ponto através de uma armada de navios cargueiros seis vezes maior que a frota da Marinha Real britânica.

Apesar do seu tamanho, este gigante, que vale 100 mil milhões de euros por ano, conseguiu manter um perfil incrivelmente discreto. A estrada que nos leva à sede global da Cargill, em Minnetonka, no estado do Minnesota, é um cenário suburbano digno de um postal. As casas são grandes e os relvados estão impecavelmente aparados, com sebes brancas à volta. O Lake Office, como é conhecido, fica numa mansão de estilo francês, no meio de uma lagoa espelhada, entre árvores verdejantes e canteiros de flores. Não é o que se esperaria do centro de um império que se estende por 67 países e emprega 142 mil pessoas. Gregory Page, alto, em forma, com ar de professor, sorri: "Chegamos a todo o mundo a partir desta planície isolada."
 
Aos 62 anos, page passou a vida inteira na Cargill – quase 40 anos –, e nos últimos seis foi presidente. A empresa não cultiva nada. Em vez disso, construiu uma vasta rede de fábricas, portos e navios, que recebe e vende cereais em estado bruto ou que os transforma em produtos que acabam nas prateleiras de supermercados e farmácias, no seu tanque de combustível ou no bar da sua cidade.

O modelo é o seguinte: se um agricultor no Brasil quer plantar soja, a Cargill faz-lhe um empréstimo, vende-lhe fertilizante e oferece-lhe um seguro para as colheitas. Depois, compra-lhe a colheita e coloca-a num navio com destino, por exemplo, à China. Aí será transformada em ração para galinhas, que vão ser mortas numa fábrica da Cargill e vendidas para saciar o apetite crescente por carne. A empresa está presente em todos os elos da cadeia.
Hoje, 90% da Cargill é detida por menos de 50 pessoas, pertencentes à sexta geração de Cargills e de MacMillans (os restantes 10% são detidos pelos empregados). São os Rockefellers da indústria alimentar e gerem este império há mais de um século. Page é o terceiro presidente que não faz parte da família e até Agosto de 2013 viu a empresa ter o seu segundo melhor ano de sempre – facturou 1,7 mil milhões de euros.

Mas isso não significa que não haja problema. Em 2011, a Cargill fez a maior recolha de carne de aves da história americana, depois de ter encontrado salmonelas em embalagens de peru picado. Foi o tipo de incidente que fez os amantes da comida orgânica e local afirmarem que a empresa representa tudo o que está errado na indústria alimentar. Page, no entanto, não tem dúvidas de como distribuir calorias aos 7,2 mil milhões de habitantes do planeta: aumentar a produção a partir das culturas existentes. "A linguagem que algumas pessoas mais cuidadosas começaram a usar menciona uma intensificação sustentável", explica. E nenhum lugar é tão intenso como o estado norte-americano do Iowa.
 
Bill Talsma, um homem corpulento com 1,92 metros de altura, abriga-se à sombra de um armazém do tamanho de um hangar de aviões, repleto de equipamento agrícola de grandes dimensões. Ainda estamos a meio da manhã em Colfax, uma cidade com 2.061 habitantes no coração da chamada Cintura do Milho do Iowa, e o calor já é suficiente para transformar o milho em pipocas.

Talsma, de 56 anos, e o seu irmão Dave, de 58, nunca fizeram outra coisa a não ser trabalhar na agricultura. "Este é o meu 34.º ano", diz Bill. "O meu pai era agricultor e o meu avô também. Não saberia fazer mais nada." Juntos, trabalham quase cinco mil hectares da terra mais produtiva do planeta – e com apenas "três pessoas a tempo inteiro". Usam todas as armas da agrícola alimentar moderna. Bill aponta para uma máquina gigante de ceifar. "Custou-me mais de 370 mil euros mas faz, num único dia, o que costumava demorar duas semanas. E tem GPS a bordo, pelo que até se guia sozinha." 
Os Talsma compram sementes modificadas geneticamente. Depois, são plantadas por semeadoras gigantes ao longo de vários quilómetros de filas direitas e espaçadas com uma precisão milimétrica. Quando o milho é colhido, a maior parte acaba a 90 quilómetros de distância, em Eddyville, onde está uma das maiores fábricas de moagem de milho da América.

A Cargill fundou esta fábrica em 1985, o ano em que a Coca-Cola resolveu substituir o açúcar por xarope de milho rico em frutose, uma alternativa mais barata. Hoje, Eddyville transforma a semente de milho em mais de uma dúzia de produtos, exportados para mais de 50 países – a fábrica vale 737 mil milhões de euros e produz quase um décimo do xarope de milho da América. É um produto potente: um único vagão consegue adoçar dois milhões de latas de Cola. Grande parte do xarope é enviada de comboio para a Califórnia, onde a Coca-Cola tem uma fábrica de engarrafamento. Muitas vezes, alguns dos vagões que carregam etanol ficam presos no fim da linha. "Chamamos-lhe o comboio do rum e cola", diz DeLange.

Os cérebros por detrás da máquina de fazer dinheiro da Cargill vivem no sonolento paraíso fiscal de Genebra. É aqui que fica a sede da sua World Trading Unit (WTU, Unidade de Comércio Mundial). As operações diárias da Cargill englobam uma extraordinária quantidade de informação – análises da produção de trigo britânico, preços de milho no Departamento de Comércio de Chicago, encomendas de ração dos criadores de porcos da China e relatórios meteorológicos do Norte do Atlântico.
 
Um grupo de 30 supertraders analisa este turbilhão de dados. São as mentes mais inteligentes da organização. O que a WTU faz, em grande parte, é gerir os riscos associados ao envio anual de 40 milhões de toneladas de cereais para todo o mundo. É a WTU que vai alugar um cargueiro de frango congelado para Yefremov e que envia tanques de xarope de milho de Eddyville para as Filipinas. E nunca perde uma viagem. Na verdade, as operações de envio transportam mais carvão e minério de ferro para outras empresas do que propriamente comida. Os mesmos navios que entregam soja brasileira transportam também carvão australiano.

Mas a WTU também recorre a um vasto e precioso arsenal de conhecimento, dados e tecnologia para fazer apostas puramente financeiras. "Genebra faz muito comércio especulativo", disse um antigo negociante da Cargill. "Nesse sentido, não há diferença nenhuma entre eles e a Glencore, ou qualquer outra corretora." A CarVal Investor, detida pela Cargill, vale 4 mil milhões de euros e especializou-se em empresas em dificuldades – já investiu no banco Lehman Brothers.

Os riscos são elevados. Em 2011, o principal negociante de açúcar da empresa saiu depois de a Cargill ter perdido 73 milhões de euros em negócios especulativos. O presidente da Cargill, David MacLennan, minimiza a ideia de que a empresa é um gigante voraz da distribuição. "Se vier até nós e quiser ficar muito, muito rico, somos a empresa errada para si. Não vai ver muitos Lamborghinis no nosso parque de estacionamento", afirma. "Há aqui uma boa herança escocesa. Não somos exibicionistas." Um antigo negociante da empresa discorda: "Isso é treta. Pode ser verdade no Minnetonka, mas não em Genebra."

Será que especular com os preços da comida combina bem com a missão de alimentar o mundo? Até a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura salienta que é "bastante claro" que a especulação exacerba os picos de preços verificados na indústria em 2008 e 2010. A Cargill argumenta que a sua operação faz mais para reduzir os custos da alimentação do que alguns dos seus negociantes fazem para os manterem elevados. Mas os críticos têm certamente alguma razão quando culpam a Cargill por nos ajudar a manter gordos, certo? A empresa também tem resposta para isso. E a resposta passa por colocar três copos de plástico, do tamanho de copos de shot, em cima da mesa. Cada um contém uma dose de chá gelado com sabor a pêssego, mas só um deles tem metade das calorias, graças a um substituto muito doce do açúcar que deriva da stevia, uma planta sul-americana. Tento adivinhar, sem sucesso, qual tem menos calorias. A minha falha é o sucesso da Cargill. A empresa conseguiu substituir 16 cubos de açúcar, a quantidade tradicional de uma lata de chá, por apenas uma pitada de pó mágico.
 
E não só a bebida sabe ao mesmo, como também se "sente" o mesmo. "Desenvolvemos uma combinação muito específica de texturizadores que recuperam a sensação na boca e a viscosidade que se esperaria [de uma bebida com açúcar]. Esta fórmula teve bastante sucesso entre dois dos nossos maiores clientes da indústria de bebidas", diz Reginald Bokkolen.

Bokkolen é um dos 150 cientistas alimentares que trabalham no laboratório europeu da Cargill, nos arredores de Bruxelas. É um dos cinco laboratórios da empresa. Chris Mallett, o químico britânico que dirige o departamento de pesquisa e desenvolvimento, é o homem a quem os gigantes da alimentação recorrem quando precisam de cortar gorduras saturadas ou encontrar uma forma de colocar a etiqueta "100% Natural" nos seus produtos. Está mais ocupado do que nunca.

Entre as fascinantes áreas em que os seus cientistas estão a trabalhar – ou entre as mais perturbadoras, consoante o ponto de vista – está uma nova classe de ingredientes que leva o corpo a pensar que está saciado. "Parece que as pessoas obesas têm micróbios diferentes dos que têm as pessoas magras nos intestinos", explica Douwina Bosscher, uma nutricionista da Cargill. "Por isso, se conseguirmos produzir alimentos que equilibrem melhor estes micróbios podemos ter uma forma eficiente de perder peso." No mundo alimentar, é o mais perto a que se chega da alquimia.

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