segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Freio na Coudelaria de Alter do Chão

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Fundada em 1748, a coudelaria tem hoje dois milhões de euros em
dívidas aos fornecedores e futuro incerto
12 Fevereiro 2012Nº de votos (0) Comentários (0)
Por:Bruno Contreiras Mateus

A seguir ao desmame os poldros de pelagem castanho-maduro vão para uma
ilha no meio do Tejo. Livres até aos três anos. As éguas ficam na
Coudelaria para serem inseminadas pelos garanhões. Os melhores machos
são trabalhados na Escola de Arte Equestre. E exibem-se. É a raça de
cavalo Lusitano Real - a que o rei D. João V quis preservar e que, na
nossa República, vive momentos negros.
A Fundação Alter Real - que através da Coudelaria de Alter do Chão é a
responsável pela criação do cavalo lusitano e pela manutenção dos
registos genealógicos da raça - "tem de ser saneada financeiramente",
defende fonte conhecedora. "Há problemas com fornecedores para o
dia-a-dia e com pagamentos salariais dos 97 trabalhadores [mas não há
ordenados em atraso]". Há cavalos por ferrar. E alimentação de 500
animais em risco.

A Domingo apurou que a Fundação precisa de 1,3 milhões de euros por
ano para funcionar.
Antes da criação da Fundação, em 2007, o Serviço Nacional Coudélico
(depois extinto) tinha dois a três milhões de euros de financiamento
do Estado. Com a criação da Fundação passou para 700 mil. Pior: "O
orçamento de Estado deste ano contempla zero", garante a mesma fonte.
"Há risco para os cavalos porque os fornecedores têm pagamentos em
atraso. O passivo ronda os dois milhões de euros".
O principal fornecedor de rações da Coudelaria de Alter do Chão
garante que o abastecimento, para já, não está em risco. "Connosco
está tudo regularizado. Fizemos um plano de acordo de pagamento que
está a ser cumprido", explica João Arruda, da Intacol, escusando-se a
revelar o valor da dívida e o número de meses em que esta foi
fraccionada.
A situação extremou-se desde que em Dezembro último o presidente da
Companhia das Lezírias, António de Sousa, doutorado em Gestão e
docente da Universidade de Évora, que por inerência dirigia a
Fundação, abandonou o cargo - desde Julho que avisava o Ministério da
Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território de que iria
tomar essa decisão. "Havia um plano de reestruturação, viabilidade e
sustentabilidade da Fundação Alter Real que, quanto a mim, se tivesse
sido posto em prática a situação não estaria onde está" - explica
António de Sousa, numa curta declaração que justifica também a razão
do seu afastamento.
SEM ADMINISTRAÇÃO
Um mês e meio sem nova administração foi suficiente para o agravar da
situação financeira: "Para passar cheques é preciso a assinatura do
presidente e de mais um elemento da administração", diz uma fonte.
"Até para pagar a conta da luz é preciso". Questionado, o Ministério
da Agricultura apenas esclareceu que "dentro de dias tomará posse o
novo presidente da Companhia das Lezírias, que por inerência presidirá
também à Fundação Alter Real. Consideramos que esse será o momento
oportuno para prestar todos os esclarecimentos relativos ao orçamento
e funcionamento da mesma".
Fica também por saber o resultado de uma inspecção-geral encomendada
pela tutela do anterior Governo.
Ao silêncio remeteu-se ainda o presidente da Câmara Municipal de Alter
do Chão, Joviano Vitorino, que permaneceu no conselho de administração
da Fundação - juntamente com Bernardo Alegria - após a saída do
presidente.
António Pimentel Saraiva, 49 anos, licenciado em Agronomia e
Agropecuária, foi o escolhido para ocupar o cargo vago. Já esteve à
frente da Associação para a Protecção das Plantas e pertenceu à
direcção do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos em Agricultura.
Sendo que ultimamente estava dividido entre Lisboa e Madrid, na
direcção ibérica da Syngenta, uma empresa mundial focada no negócio
agrícola.
"Não é um 'boy' da política. Não o conheço pessoalmente, mas pelo que
oiço dizer é um profissional com um certo prestígio" - afirma o
arquitecto Arsénio Raposo Cordeiro, vice--presidente da Associação
Portuguesa do Cavalo Puro Sangue Lusitano. E apressa-se, no entanto, a
ressalvar que "o cavalo lusitano só depende dos criadores, é uma coisa
muito para lá destas instituições do Estado".
Entre os cerca de 400 criadores existem duas mil éguas em Portugal.
"O que está lá [na Coudelaria de Alter do Chão] à responsabilidade do
Estado é o património genético da raça, que interessa manter e
melhorar - e que têm tentado fazer, mas fazem-no sem meios. A outra
função é fornecer reprodutores aos criadores, mas pouca gente ou
ninguém os usa. As coudelarias do Estado entraram em grande decadência
por falta de cuidado da tutela".
40 NASCIMENTOS
Começou a época da reprodução. Na Coudelaria de Alter do Chão, a
eguada que pasta na Tapada do Arneiro, composta por 60 éguas de
ventre, recolhe ao estábulo das 10h30 até às 15h30. Ainda só nasceram
duas crias, mas a partir de agora os nascimentos são galopantes até
meados de Maio, início de Junho. Nascem cerca de 40 por ano.
É tudo feito por inseminação artificial, respeitando um plano de
emparelhamento. Escolhe-se o garanhão para cada égua, recorrendo a
sémen fresco ou congelado. "O objectivo é termos um poldro que seja
melhor do que o pai e a mãe. Primeiro, para obtermos cavalos que
sirvam para performances desportivas, como a 'dressage', atrelagem,
obstáculos. E, segundo, para fornecer a Escola Portuguesa de Arte
Equestre", explica o engenheiro Francisco Beja, coordenador do
departamento de coudelarias. "O nosso objectivo não é produzir cavalos
para vender. Ainda que aqueles que não sirvam os nossos interesses, ou
sejam um excedente, se vendam no nosso leilão anual, no dia 24 de
Abril".
Dez mil euros vale um potro quando está 'desbastado' (trabalhado). Um
garanhão pode ir aos 15 mil. E uma égua aos seis mil euros. Já a venda
de sémen, pode render entre mil e 1500 euros. França, Espanha,
Inglaterra, Brasil, Alemanha e Holanda são países interessados nos
cavalos lusitanos. "Oficialmente, a época de reprodução já começou e
não há grandes pedidos de sémen. É o reflexo da crise" - explica
Francisco Beja.
Os melhores cavalos ficam entregues à Escola Portuguesa de Arte
Equestre, em Queluz, que tem por missão dar espectáculos para promover
a raça. Acontece que a crise que afecta a Fundação Alter Real está
também a pôr em risco uma das quatro melhores escolas do Mundo.
"Estamos na pior situação económica de sempre. Devemos aos
fornecedores. E os ferradores já não querem ferrar os cavalos porque
não se lhes paga atempadamente", lamenta o director, Filipe Graciosa.
"Tudo indica que a Escola passará para a gestão do Parque de Sintra
Monte da Lua. O que me agrada, porque isto chegou a um desespero que
não sabemos onde vai dar", adianta o director. "Mas sou da opinião de
que deveríamos continuar com o cavalo de Alter do Chão".
Dos 50 e poucos cavalos da escola, 20 por cento não estão a ser
trabalhados e os restantes fazem-no em más condições. "Para nós, é
vergonhoso", diz Filipe Graciosa. "Tenho momentos de alguma tristeza
ao ver a falta de condições a que chegámos. A alimentação dos animais
está em risco. É gravíssimo. Hoje em dia só somos fornecidos por
consideração à minha pessoa", acrescenta.
Um dos cavalos que tem dado que falar é o 'Rubi'. Irá aos Jogos
Olímpicos de Londres, este ano. Filipe Graciosa explica que a proeza
só foi possível graças ao facto de o cavalo ter sido vendido (por 110
mil euros) a Christine Jacoberger, que por sua vez o colocou à
disposição do cavaleiro Gonçalo Carvalho, da Escola, para o trabalhar.
"Senão a Escola não tinha condições para este percurso".
Outro dos negócios foi a venda de 50 por cento do 'Viheste', por 110
mil euros, a um criador brasileiro, numa estratégia entre os dois
países para difusão do cavalo lusitano, explica uma fonte conhecedora
do negócio.
Manter tanto o 'Rubi' como o 'Viheste' custa por ano 50 a 60 mil
euros. Justifica-se por isso a venda e os proprietários continuam a
fornecer sémen à Coudelaria de Alter do Chão para reprodução ou para
venda.
RAÇA VENCEDORA
'Da Vinci' é filho do 'Viheste'. Tem três anos. Acabou de chegar da
ilha no Tejo e, na Coudelaria de Alter do Chão, vai passar pela
unidade de desbaste, selecção e estágio. É aqui que se percebe se
herdou os genes do pai. 'Coronel', filho do 'Rubi', herdou
comprovadamente. É campeão nacional na categoria de cavalos de quatro
anos.
O cavaleiro Duarte Nogueira, 46 anos, explica que o 'Coronel' é "um
cavalo que tem os três andamentos bons - passo, trote e galope -,
muito nobre, sabe distinguir o que é trabalho do que é lazer. É muito
inteligente". Com 27 anos de experiência e muitos prémios entregues à
Coudelaria de Alter do Chão, ajuíza que em todos esses anos "os
cavalos lusitanos têm evoluído bastante em termos de andamento,
morfologia e temperamento. Eles têm evoluído tanto como a tecnologia:
cada vez se fazem cavalos melhores".
É no picadeiro que se vê a garra de um cavalo. O 'D. Elias' chegou há
pouco tempo da ilha e numa das primeiras vezes que é montado, ao som
da rádio M80, reage com nobreza.
No meio desta beleza natural alentejana, cerca de 25 mil visitantes
anuais - cada bilhete de entrada custa até cinco euros - tomam
contacto com a raça lusitana. Sendo que, várias fontes ouvidas,
consideram que este espaço pode receber três vezes mais visitantes. As
instalações - 16 hectares de telhados (equivalente a 16 campos de
futebol) - foram recuperadas nos últimos 15 anos, num projecto do
arquitecto Arsénio Raposo Cordeiro. "Aquele espaço só precisa é de
gestão".
Todos os dias, por volta das 15h30, a bucólica paisagem começa a ser
preenchida pelas éguas. As portas da cavalariça abrem-se e elas correm
livres e ordeiras para os pastos, seguidas pelas crias.
Se o tempo fosse de chuva, os campos estariam mais verdejantes e
haveria mais alimento - não confinando a alimentação futura às rações.
Mas é ali também, entre azinheiras e ao luar, que nascem os poldros.
Só na companhia das mães.
REPRODUÇÃO É SEMPRE POR INSEMINAÇÃO
'Ruela' é uma égua impulsiva; 'Beirão' é calmo. É o cruzamento
perfeito. Mas eles nunca se chegam a conhecer. A veterinária
responsável pela reprodução, Maria José Correia, encarrega-se de
recolher o sémen do cavalo e de inseminá-lo de seguida na égua, de
acordo com um plano de emparelhamento. Muitas vezes o sémen é
congelado, como o de cavalos como o 'Viheste', que está no Brasil, ou
o 'Rubi', que já não pertence à Coudelaria.
A veterinária justifica que, entre as vantagens da inseminação, o
método evita a transmissão de doenças e agressão. Mas, principalmente,
o sémen permite ser inseminado em várias éguas, congelado ou vendido.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/freio-na-coudelaria-de-alter-do-chao

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