sexta-feira, 4 de julho de 2014

OGM: quando os cientistas se esquecem de fazer ciência

ANA GERSCHENFELD 04/07/2014 - 08:30
Os organismos geneticamente modificados (OGM) são ou não uma ameaça para a saúde humana? Um artigo que concluía que sim – e que fora retirado de publicação por falta de provas e falhas graves – acaba de ser republicado sem motivo, deixando-nos mais longe da resposta.

 
O artigo sobre os efeitos dos OGM fora retirado da publicação DR

Gilles-Éric Séralini, cientista da Universidade de Caen (França) e autor principal de um controverso artigo que, supostamente, associava o cancro ao consumo de organismos geneticamente modificados (OGM) – mais precisamente de cereais transgénicos –, não parece estar interessado em tratar seriamente do assunto. Está convencido de que tem razão – e disposto a adoptar uma posição nada científica para ter a última palavra.

A prova disso: a saga do artigo assinado por ele e a sua equipa, que foi publicado, em 2012, numa revista científica; retirado de publicação, em 2013, pela própria revista e devido a diversas falhas graves; e, apesar de tudo, tornado a publicar há dias, numa outra revista. Só que, desta vez, sem passar por qualquer crivo científico de avaliação – e sem qualquer novo resultado que venha agora demonstrar a justeza das conclusões iniciais dos seus autores.

Muitos leitores lembrar-se-ão das horrorosas imagens de ratos de laboratório com tumores subcutâneos do tamanho de bolas de pingue-pongue que correram mundo em Setembro de 2012. Segundo a equipa de Séralini, que publicaria os seus resultados no mês seguinte de Novembro na conceituada revista Food and Chemical Toxicology, do grupo Elsevier, o estado de saúde dos animais devia-se a terem sido alimentados com uma variedade de milho transgénico, produzido pelo gigante Monsanto e geneticamente manipulado para ser resistente a um herbicida (já agora, também comercializado pela Monsanto).

A maneira como os resultados foram divulgados junto dos media também sugere fortemente que, já naquela altura, os autores queriam minimizar as eventuais controvérsias em torno do seu trabalho. Acontece que os jornalistas só tinham acesso antecipado aos resultados, se tivessem previamente assinado um acordo de confidencialidade que os tornaria passíveis, caso mostrassem o artigo a outros cientistas para recolher a sua opinião, de terem de pagar uma elevada indemnização aos autores. Nem as revistas científicas mais estritas proíbem os jornalistas de solicitar opiniões independentes acerca de resultados prestes a serem publicados.

A experiência realizada por Séralini e colegas (franceses e italianos da Universidade Verona) consistira em distribuir 200 ratos por 20 grupos de 10 animais e em alimentá-los, durante toda a vida (dois anos), com diferentes dietas. Em particular, enquanto certos grupos comiam diferentes doses de um tipo de milho transgénico chamado NK603, outros comiam diversas doses desse milho transgénico e ao mesmo tempo bebiam água que continha diferentes quantidades do herbicida, chamado RoundUp, ao qual o milho transgénico em causa é resistente. E outros ainda comiam alimentos não transgénicos mas bebiam água contaminada com diversos teores de herbicida. Animais que não consumiam nem alimentos transgénicos, nem herbicida serviam de referência para testar os efeitos do OGM e do RoundUp.

Conclusão dos cientistas: os ratos dos grupos alimentados quer com milho transgénico (com ou sem água "temperada" com herbicida), quer com dietas não transgénicas (mas contaminadas pelo herbicida), apresentavam mais problemas de saúde – e em particular maiores taxas de cancro – do que os outros. Ou seja, o milho transgénico era, segundo eles, tão perigoso para a saúde como o próprio herbicida que era suposto neutralizar.

Os opositores dos OGM saudaram logo o estudo como sendo a prova de que tanto esperavam para banir estes perigosos produtos do mercado para sempre. Mas rapidamente numerosos cientistas começaram também a questionar, em particular junto da revista, a forma como os resultados tinham sido obtidos.

Publicação, retractação

Um ano mais tarde, em Novembro de 2013, a Food and Chemical Toxicology dava razão aos críticos e "despublicava" o artigo de Séralini (que continua, contudo, a estar acessível no site daquela revista, com a palavra "RETRACTED", a vermelho, a barrar cada página do texto). A revista retirou o artigo depois de os autores se terem recusado a fazê-lo de motu proprio.

Os editores da revista escreveram então que não tinham detectado qualquer indício de fraude, mas sim falhas graves na metodologia utilizada pela equipa de Séralini. "Uma observação mais aprofundada dos dados revelou que, com o reduzido tamanho da amostra [de ratos], não é possível chegar a conclusões definitivas", lia-se no editorial então publicado para explicar a decisão da revista.

A estirpe de ratos utilizada também levantava problemas, uma vez que é particularmente propensa a desenvolver tumores malignos após os 18 meses de vida. Portanto, não era possível excluir que a mortalidade elevada observada nos grupos de animais tratados não fosse devida à variabilidade fisiológica natural destes animais e não a um qualquer efeito da alimentação. Podemos, aliás, perguntar-nos por que é que a revista não detectara estes problemas, no fundo bastante evidentes, na altura da avaliação inicial. Mas essa seria outra história.

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