terça-feira, 19 de março de 2013

A morte silenciosa das abelhas

por Ricardo J. Rodrigues Fotografia de Gerardo Santos/Global Imagens


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As abelhas estão cada vez mais ameaçadas de extinção. A vespa
velutina, uma espécie predadora que veio da Ásia, entrou em Portugal e
está a espalhar-se rapidamente pelo território, dizimando as colmeias.
Sem polinização, não há legumes nem frutos. O risco de uma crise
alimentar é real.
As vespas estão em vigia, estacionadas sobre as colmeias. São quatro
ou cinco, às vezes dez. Permanecem horas a fio, no ar, à espera.
Revezam-se se estiverem cansadas. Assim que uma abelha arrisca a
saída, uma velutina ataca-a, perseguindo-a até a prender nas patas.
Tem mandíbulas fortes, com as quais não lhe custa muito decapitar a
presa. Depois, suga a massa interior do tórax da abelha e leva-a para
o ninho, para alimentar a criação. Umas horas depois, volta à vigia.
As abelhas ficam com duas hipóteses desgraçadas: ou largam da colónia
para um voo suicida ou ficam lá dentro, até morrerem todas .
O alarme tocou em setembro de 2011. Um apicultor detetou um ninho de
vespas perto de Viana do Castelo e chamou as autoridades. Toda a gente
fez figas para que aquele fosse um caso isolado, mas não era. «A vespa
autóctone em Portugal chama-se crabro e também se alimenta de abelhas,
mas apenas das que estão moribundas. Por isso até tem um papel útil:
faz uma limpeza seletiva da colmeia, conservando os exemplares mais
fortes», diz Paulo Russo, professor de zootecnia e investigador nos
laboratórios apícolas da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
(UTAD). «Esta espécie asiática não só faz das abelhas a sua principal
dieta como ainda inibe a saída dos insetos da colmeia, matando
milhares de abelhas em poucos dias. O impacte é avassalador.»
A V espa velutina nigritorax chegou à Europa por via marítima, em
2004. As autoridades francesas desconfiam que vieram num carregamento
de bonsai , proveniente da China e descarregado em Bordéus. Nesse ano,
eliminaram três ninhos. Em 2005, cinco - e a coisa parecia controlada.
Mas em 2006 foram detetados 223 ninhos de vespa velutina em França e,
um ano depois, os animais tinham-se espalhado por metade do país: 1613
ninhos. Não tardaram a chegar à Europa Central e ao Norte de Espanha.
Há um ano e meio, entraram em Portugal.
Em dezembro de 2012 estavam confirmados nove ninhos no Alto Minho. No
final de fevereiro, o número tinha subido para cinquenta. Do distrito
de Viana do Castelo espalharam-se para Braga e Vila Real. O Ministério
da Agricultura, a Direcção-Geral de Veterinária e a Proteção Civil
decidiram intervir, em parceria com os produtores. «Fizemos a
localização de todos os ninhos por GPS e destruímos os que estavam
ativos, com maçaricos», conta Alberto Dias, presidente da Associação
de Apicultores do Minho e Lima (APIMIL). «Como as vespas se dão em
áreas urbanas, começámos a receber denúncias e o número continua a
aumentar. O problema são os ninhos que ninguém vê, na floresta. É por
aí que as velutinas vão continuar a progressão para sul. E vai ser
impossível travá-las.»
No final de janeiro, foi localizada uma colónia de vespas num ilhéu do
rio Minho e Alberto acompanhou os bombeiros para os trabalhos de
eliminação do ninho: um barco, carregado com o maçarico e as botijas
de gás, e uma escada para subir às árvores, que as vespas gostam da
altitude. «Quando lá chegámos, a colónia já tinha sido abandonada. Por
isso, tirei-a da árvore e trouxe-a comigo.» É um ninho impressionante,
quatro ou cinco vezes maior que os das vespas autóctones. Mede um bom
meio metro e é feito das substâncias orgânicas que as velutinas mascam
para formar uma espécie de argamassa. No centro são criadas as novas
colonizadoras, que depois largam e procuram um novo habitat . As
velutinas avançam progressivamente, à procura de abelhas. E, assim que
escolhem uma nova geografia, umas constroem o ninho, outras procuram
os apiários. E esperam.
No Oriente, as abelhas asiáticas aprenderam a defender-se das
velutinas. Quando uma vespa prospetora entra na colmeia, a colónia
começa por fechar-lhe a saída. Depois as abelhas rodeiam o predador e
formam uma bolha ao seu redor, começando a bater as asas para criar
calor. As abelhas suportam temperaturas de 42 graus, as vespas apenas
de 40. Então as obreiras aquecem a temperatura da colmeia até aos 41
graus, quase se matando a si próprias para eliminarem a vespa. Vão ser
precisas décadas de evolução genética para a abelha portuguesa
conseguir fazer o mesmo.
A Apis mellifera iberiensis , ou abelha ibérica, tem algum ADN
africano e é uma abelha mais agressiva do que a sua congénere
europeia. Mas, mesmo antes da chegada da velutina, já estava sob séria
ameaça de extinção. Sobretudo por causa da varroa, um ácaro asiático
que chegou à Europa nos anos noventa do século passado e que criou
enorme mortalidade. Hoje, existem antibióticos que ajudam a menorizar
os efeitos da praga, mas não a eliminam. O problema é que o uso
excessivo de medicamentos também é nefasto e pode levar ao colapso das
colmeias. O mesmo acontece com a loque americana, uma bactéria que, há
uma década, quase extinguiu a abelha em Portugal.
Depois há a síndrome de colapso das colmeias, um fenómeno crescente
cuja origem os cientistas não conseguem estabelecer em definitivo. Há
uns anos acreditou-se que as antenas de telecomunicações destruíam os
radares das abelhas, e por isso elas abandonavam a colónia. Hoje, a
tese dominante tem que ver com os pesticidas. Ainda na semana passada
a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar, EFSA, veio condenar
o uso de substâncias neonicotinoides nas sementes, porque aquele tipo
de inseticida tem um efeito devastador nas abelhas, intoxicando-as.
Certo é apenas isto: cada vez mais, os animais estão a abandonar as
colmeias sem razão evidente. Abandonam a criação e a polinização e
partem para a morte, numa espécie de suicídio coletivo.
Amadeu Fortunas, 36 anos, é apicultor e o seu mel está farto de ganhar
concursos. Na vertente transmontana da serra do Gerês instalou
trezentas colmeias onde produz mel de urze. A Casa do Couto, assim se
chama a sua marca, vence há dois anos o primeiro lugar na Feira
Nacional de Agricultura, em Santarém. Mas agora o homem está
assustado: «Comecei a ver as vespas a rondar os apiários e várias
colmeias simplesmente extinguiram-se.» A produção deste ano é capaz de
baixar, e o homem teme que a culpa seja da vespa. Daí a uns minutos há
de receber um telefonema de uma vizinha de Paradela do Rio, concelho
de Montalegre. No telhado de uma casa isolada, a mulher deu com um
ninho, encaixado nas telhas. Então o homem lá vai, armado de lanterna
na mão, e não tarda em dar com uma estrutura enorme, a tal argamassa
que os insetos mascaram com as mandíbulas. Quarenta centímetros de
ninho, já sem vespas. As velutinas acabaram de o abandonar. «Para onde
terão elas ido?», pergunta Amadeu. Lá fora a floresta espraia-se por
quilómetros de serra, densa e alta. É impossível responder à sua
inquietação.
O fim da humanidade
«Quatro anos depois de se extinguirem as abelhas, extingue-se a
humanidade.» A frase pertence a Albert Einstein e, quando foi
proferida, no início do século xx , ninguém imaginava que a hipótese
pudesse tornar-se real. Paulo Russo, o investigador zootécnico da
UTAD, avisa que a introdução da vespa velutina é uma ameaça que não se
pode subestimar. «A estratégia de eliminação deste predador não é
eficaz e começou a ser aplicada muito tarde. Temos, de facto, um
problema em mãos.»
Os sinais são tudo menos positivos. Miguel, «Maia como a abelha», é o
técnico apícola que tem conduzido os trabalhos de deteção da vespa
velutina em Portugal. Passou os dois últimos anos a estudar esta
espécie e este aumento de ninhos nos meses de inverno só podem ser
sinal de uma progressão rápida da espécie asiática. «A maior parte dos
ataques aos apiários acontece do início do verão até ao início do
Outono», diz ele. «Entre Junho e Novembro a população do ninho de
vespas começa a crescer e há maior procura de alimento. E por isso que
a grande pressão sobre as colmeias acontece nesta altura.» Depois do
acentuado crescimento da comunidade de vespas durante o inverno, o
verão pode revelar uma calamidade.
As velutinas distinguem-se das vespas crabro por três caraterísticas
essenciais. O tórax é negro, as patas são amarelas e o abdómen é mais
escuro, com listas amarelas perfeitamente definidas. Aos produtores de
mel, Miguel Maia sugere a construção de armadilhas. Não permitem a
erradicação de vespas, mas podem ajudar a Proteção Civil a detetar a
presença de um ninho e eliminá-lo. «Podem construir-se algumas
estruturas verdadeiramente simples, como por exemplo uma garrafa de
plástico de água, com a parte superior virada ao contrário e uma
solução de vinho branco, groselha e cerveja. As vespas entram,
atraídas por este conjunto de odores, e já não conseguem sair.»
São medidas que podem ajudar, mas não podem resolver a invasão.
Sem abelhas, a cadeia alimentar teria obrigatoriamente de mudar, já
que setenta por cento dos produtos frutícolas e hortícolas que a
humanidade consome precisam das abelhas para o processo de
polinização. «Nos Estados Unidos, onde a praga se fez sentir, há
apicultores que deixaram de produzir mel e passaram a prestar serviços
exclusivos de polinização dos pomares», avisa Paulo Russo. Ou seja, as
colmeias são levadas para as zonas de onde estão naturalmente a
desaparecer e operam uma polinização intensiva. «Os serviços são
pagos, encarecendo brutalmente o preço dos produtos alimentares.» Em
Portugal, há quem o faça a troco da cedência de terrenos para as
abelhas. No curto prazo, é possível que o cenário mude. E os preços,
claro, aumentem.
As frutas seriam as primeiras a desaparecer. No caso das amêndoas,
elas desapareceriam quase por completo, enquanto as maçãs e os
pêssegos veriam um redução na casa dos oitenta por cento. Citrinos
como a laranja, o limão e a tangerina teriam uma redução de produção
para menos de metade. Os frutos exóticos desapareceriam, as peras
passariam a ser um produto de luxo. Depois, nas hortícolas, a extinção
seria quase total. Sobreviveriam os cereais, cuja maior parte da
polinização é feita pelo vento. Os legumes, esses, estavam condenados.
«Um cenário de extinção alteraria toda a cadeia alimentar», vaticina o
professor da UTAD. O desaparecimento das frutas, dos legumes e das
flores silvestres daria cabo de aves e herbívoros. Consequentemente,
os carnívoros não teriam o que caçar e o homem perderia a maior parte
dos seus recursos alimentares. O cenário traçado por Einstein pode
parecer catastrófico à primeira vista, mas tem a sua razão de ser. As
abelhas não estão só a lutar pela sua sobrevivência. Estão também a
lutar pela nossa.
Na última década, o Ministério da Agricultura português e a Comissão
Europeia têm-se multiplicado em esforços para incentivar a instalação
de colmeias. Nenhum outro setor agrícola recebe tantos incentivos. A
velha produção, de pequena escala, está a dar lug ar à instalação de
grandes apiários. Somam-se projetos e candidaturas a programas e
subsídios. O potencial económico das abelhas é tremendo. E, mesmo numa
altura de grande ameaça, a procura é maior do que a oferta. A única
coisa que pode explicar um tamanho incentivo a um setor que já por si
é rendível é este: as autoridades estão assustadas. Um mundo sem
abelhas não é mundo nenhum.
Apicultores precisam-se
Nos grandes eucaliptais de Vila Nova de Cerveira, Gualdino Dias faz
contas de cabeça. As suas quatrocentas colmeias tornam-no num dos
maiores produtores do Alto Minho, região onde se produz 25 por cento
do mel nacional. As vespas já andam de volta das suas abelhas e o
homem faz contas aos prejuízos. «Exporto noventa por cento do que
produzo, mas para isso preciso de ter grandes quantidades de mel. Se
reduzo, tenho de vender ao mercado português, que está dominado por
grupos económicos que compram a menos de um euro o quilo. Para fora,
vendo o mesmo a três euros.»
Existem quase 18 mil apicultores em Portugal e o número está a
crescer. O Algarve é a zona de maior produção do país, seguida pelo
Alto Minho, Trás-os-Montes e a Beira Alta. Mais de noventa por cento
dos produtores nacionais não são profissionais, ou seja, têm menos de
150 colmeias. Gualdino Dias, que tem 74 anos, só depois da reforma
decidiu dar atenção exclusiva às abelhas. Agora, num ano bom, faz oito
ou nove toneladas. «Isto é trabalhoso, porque a apicultura é como a
música, nunca tem fim.»
Os mais antigos estão habituados a extrair o mel das colmeias, mas há
muito mais potencialidades na produção das abelhas. A criação de
rainhas e de enxames é um mercado lucrativo, porque há cada vez mais
gente a querer investir no setor. Depois há a extração de mel, cera,
pólen e própolis, que é usada sobretudo nos fármacos. A geleia real,
uma secreção com que as obreiras alimentam as larvas, tem várias
aplicações no campo da saúde e estudos recentes apontam que o próprio
veneno, a apitoxina, é eficaz na terapêutica do HIV. Estas
potencialidades, no entanto, são sobretudo exploradas pelos grandes
apicultores.
É precisamente isso que Dinis Neves, 37 anos, e Frederico Pereira, 31,
querem fazer. Em outubro de 2011, os dois amigos lisboetas decidiram
apresentar uma candidatura a um programa europeu para a instalação de
mil colmeias e uma unidade de extração. Aproveitaram terrenos de
família em Mafra e Ourém e, desde maio do ano passado, andam
preocupados em fazer o desdobramento de colmeias, para atingirem a
produção máxima. «A nossa ideia é produzirmos o máximo que a colmeia
tenha para oferecer, sem nunca abdicar dos critérios de sanidade e
qualidade», diz Frederico.
A empresa chama-se Bom Mel e o objetivo dos rapazes é, a curto prazo,
fazerem das abelhas a sua vida. Frederico já tinha as colmeias na
cabeça há muito tempo. É engenheiro florestal e trabalhou vários anos
numa empresa farmacêutica que
vende medicação de combate à varroa. «Sempre quis uma vida ao ar
livre, em vez de ficar fechado num escritório. Este projeto é muito
trabalhoso, mas acredito que vamos ter sucesso.» Dinis veio de uma
área completamente diferente. Estudou psicologia organizacional e,
antes da Bom Mel, era diretor de recursos humanos numa empresa de
telecomunicações em Luanda. «Quis envolver-me em algo que fosse o meu
próprio negócio e que fosse um bom projeto em termos ambientais.»
Hoje, Dinis e Frederico vão instalar um novo apiário no caminho para a
Ericeira. Um apicultor nunca gosta de revelar a localização exata das
suas colmeias, visto que os roubos têm aumentado muito com a subida de
preços dos enxames (custam em média cinquenta euros, o dobro de há dez
anos). Numa carrinha seguem três caixas de madeira, mais os tijolos
onde assentarão as estruturas. Uma colmeia nunca pode ser instalada
diretamente no solo, senão será alvo fácil para insetos e animais
rastejantes. Têm de trepar um monte com uma colmeia cheia de abelhas
lá dentro. Estão fechadas, mas, ainda assim, é uma operação que requer
cuidados.
Cada colmeia tem entre dez e oitenta mil abelhas. Nos braços dos dois
jovens apicultores segue um ecossistema precioso. «É um animal
fascinante, por toda a organização e eficiência », e Frederico é todo
sorrisos. Conta como as abelhas trabalham ininterruptamente, até
morrerem de exaustão. Tudo em prol da comunidade. «A delas e, em
última instância, a nossa.» Dinis tem outra visão: «É um animal
selvagem. Mesmo que te aproximes com fato de proteção, há sempre uma
certa ansiedade e nervosismo quando manipulas os favos e elas te
atacam.»
Amanhã seguem viagem para Ourém, vão tratar dos outros apiários. É
preciso manter as colmeias limpas, fazer desdobramentos, analisar a
percentagem de varroa e enviar o mel para análise, para atestar a sua
qualidade. A unidade de extração está prestes a arrancar. Um armazém
armado com cinco máquinas: um desoperculador, dois extratores, uma
máquina de envasamento e uma bomba de aspersão. Ainda há os
equipamentos de filtragem e decantonamento. O mel precisa de ser
separado da cera e filtrado até ao estado de pureza. Naquelas
instalações fecha-se o ciclo, até o produto ficar armazenado em
contentores, para venda a retalho, ou frascos, para venda ao público.
Os donos da Bom Mel estão na fase inicial do negócio e o esforço que
estão a investir neste primeiro ano é bastante grande. A vespa
velutina ainda não chegou aos seus terrenos, mas têm plena consciência
de que isso é uma questão de tempo. «Assusta-nos muito esta espécie
invasora, até porque é impossível calcular quantas colmeias vão
morrer», diz Dinis. «Não há nada a fazer, por isso não temos grande
remédio senão continuar a trabalhar e, enfim, esperar pelo melhor.»


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