quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Agricultura, alimentação e natureza

MARTA PAZ 29/09/2015 - 16:55

Não podemos prolongar um sistema em que produzimos e consumimos mais do que necessitamos.

A Europa produz comida em excesso. Graças essencialmente à nossa produção, temos comida disponível nas lojas para alimentar cerca de 136% da população europeia, apesar de não conseguirmos assegurar a sua adequada distribuição por todos. Ainda assim, os agricultores europeus continuam a ser pressionados para produzir mais quantidade por menos dinheiro, deixando para segundo plano os custos sociais e ecológicos que daí resultam.

Na Europa, a agricultura representa mais do que a nossa fonte de alimentos. Ao longo de milhares de anos a paisagem foi sendo moldada pelos sistemas agrícolas. Os hábitos das gentes e das espécies adaptaram-se, fazendo da agricultura tradicional um dos pilares da biodiversidade.

A Política Agrícola Comum (PAC) atual reconhece este papel da agricultura e usa-o como justificação para o seu orçamento, que representa cerca de 38% do orçamento total da União Europeia.

A PAC já não tem como objetivo aumentar a produção de alimentos como aquando da sua criação em 1958, mas sim apoiar um sector que, para além dos alimentos, pode prestar bens e serviços públicos ambientais e de ecossistema.

Os agricultores europeus devem receber ajudas por cumprirem práticas benéficas para a conservação do solo, da água, da biodiversidade, da paisagem e para a atenuação e adaptação às alterações climáticas.

Apesar desta concepção inteligente, a implementação da nova PAC tem vindo a revelar-se um desastre. Os Estados-membros definiram critérios muito pouco ambiciosos para a atribuição das ajudas, resultando na prática em escassos benefícios ambientais – ou seja, pagamos impostos para ajudar a nossa agricultura a ser mais sustentável, mas a intenção perde-se num caminho ineficaz.

Vejamos apenas um de vários exemplos: a PAC prevê a atribuição de ajudas aos agricultores para a diversificação de culturas. Esta é uma medida muito importante para contrariar as monoculturas que eliminam as hipóteses de sobrevivência de várias espécies de aves e insetos, prejudicando a própria atividade agrícola, ao diminuir, por exemplo, a capacidade de polinização.

Mas na operacionalização desta medida os critérios isentam as explorações com menos de dez hectares que recebem a ajuda sem ter de diversificar nada, enquanto nas explorações de área superior a cultura principal fica limitada a 75% da superfície. Mas se 75% é um valor pouco ambicioso, a diversificação pode ser de todo eliminada através de um mecanismo de equivalência, que foi já pedido para a cultura do milho por Estados-membros como Portugal e França.

Porque continuamos então a sobreproduzir alimentos, ao mesmo tempo que hesitamos em apoiar uma agricultura mais sustentável? Encontramos algumas respostas olhando para o nosso sistema de produção e consumo. Por um lado, permitimos o desperdício de algo entre um terço e metade do total de alimentos produzidos, desde a produção até ao consumo final, segundo dados publicados pela Comissão Europeia e pela FAO. Por outro lado, consumimos mais do que o necessário, razão pela qual tem aumentado a incidência de doenças cardiovasculares, obesidade e alguns tipos de cancro na Europa.

Temos de ser capazes de alterar este modelo. Não podemos prolongar um sistema em que produzimos e consumimos mais do que necessitamos, degradando simultaneamente a nossa saúde, os nossos recursos e a capacidade das gerações futuras obterem o seu alimento.  

A nossas políticas públicas, como a PAC e o seu pesado orçamento, têm de servir para apoiar uma agricultura e uma alimentação sustentáveis, que pelo caminho contribuem também para a conservação da natureza e do mundo rural.

Marta Paz é membro da direcção da LPN-Liga para Protecção da Natureza

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