Demografia
De 2004 para cá, o índice dos preços da comida da FAO mais do que
duplicou. A água escasseia. O planeta está a consumir por ano 50% mais
do que a terra consegue suportar. É neste cenário que vamos bater mais
um recorde de crescimento populacional
João Dias Miguel
11:18 Quarta feira, 31 de Ago de 2011
A 31 de outubro de 2011, nascerá um bebé. Será destro, rapaz e chinês.
Esta criança - vamos chamar-lhe Han, em honra da etnia mais populosa
da terra, os chineses Han - será o 7 000 000 000.º ser vivo do
planeta.
Comerá mais carne, leite e ovos do que os seus pais e avós alguma vez
sonharam possível. Terá, a avaliar pelos dados de hoje, mais
possibilidades de vir a possuir um telemóvel do que uma conta
bancária.
Nascerá mais facilmente em meio urbano, e pobre, do que rural.
Assistirá, muito provavelmente, ao declínio do poder dos Estados em
detrimento do das cidades, num mundo ainda mais desigual.
Mas congratular-se-á com a progressiva transferência do poder
económico do Ocidente para a Ásia, onde viverá numa das 15 megaurbes
com mais de 10 milhões de habitantes que essa região terá em 2025
(cinco delas na China). Quando olhar para trás, para os anos que
antecederam o seu nascimento, Han verá que já prevíamos boa parte dos
males que assolam o seu mundo: as mudanças climáticas, a escassez de
água, o custo proibitivo dos alimentos e da energia.
E no entanto, durante algumas décadas, não parecia que fosse esse o
destino de Han. Poder-se-á dizer que quando o Ensaio sobre o princípio
da população saiu, em 1798, as perspetivas eram igualmente sombrias.
No entanto, desde a época em que o livro do inglês Thomas Malthus foi
dado à estampa, a extraordinária aventura da Humanidade não parou de
se desenrolar.
Só no século XX, e apesar da pressão posta no planeta, a população
quadruplicou, o nível de vida aumentou, a produção de alimentos também
disparou, as taxas de mortalidade infantil desceram a pique, a
esperança de vida dobrou. Durante algum tempo, já para o fim desse
século, pareceu até que o preço do petróleo, das matérias-primas e da
comida não parariam de descer. Já depois de 2000, segundo o Banco
Mundial, saíram da linha de miséria 400 milhões de pessoas na China,
200 milhões na Índia, 50 milhões no Brasil.
Toda essa gente abandonou um menu à base de vegetais para uma ementa
mais à base de carne. A China, por exemplo, quadruplicou o seu consumo
entre 1961 e 2001. (Na Índia, por razões culturais, manteve-se
praticamente igual). A bomba demográfica foi desarmadilhada nos países
ricos, na Rússia e em alguns dos seus antigos países satélites, a
população até está a decrescer (a Rússia passou de um pico de 148,5
milhões em 1991 para os atuais 142).
Mas a alvorada do século XXI parece menos prometedora. Depois de
décadas de progressos na redução da fome e do número de pessoas que
vivem abaixo do limiar da pobreza, assistiu-se a uma recessão global
que teve início em 2008 e parece não ter fim à vista e duas crises
alimentares (2007-08 e 2010-11), que atiraram de novo para uma vida
abaixo do limiar mínimo de subsistência mais de 150 milhões de
pessoas. As últimas vítimas são os 11 milhões de indivíduos que, no
Corno de África, estão em risco de vida enquanto a ONU se debate
internacionalmente para arranjar fundos e localmente para entrar numa
Somália devastada pela guerra civil, privada dos seus recursos
naturais pelas frotas pesqueiras do Ocidente e tornada num autêntico
cemitério de lixos tóxicos pelo resto do mundo.
POBREZA E TERRORISMO
E não é só a África para lá do Sara que se vê nestas dificuldades. No
Paquistão, um dos países de maior crescimento populacional do globo, a
percentagem de pessoas que sofrem de "insegurança alimentar" subiu de
37% em 2003, para os 49% em 2010, ainda antes das devastadoras cheias
de julho. Esta massa humana adverte Abid Qaiyum Suleri, um
especialista de Islamabad "pode ser facilmente convertida ao
terrorismo ". Esta opinião é repetida por David Bloom, demógrafo em
Harvard, que se refere a países como o Paquistão e a Nigéria, como
verdadeiras "bombas de fragmentação".
Bloom, que pode ser acusado de tudo menos de neomalthusianismo,
adverte que o crescimento demográfico é um "conto de dois mundos". "As
nações menos desenvolvidas são e serão responsáveis pelo crescimento
populacional das próximas quatro décadas; enquanto no resto do mundo,
com a exceção dos EUA, ele se manterá estável. Em 1950, 68% da
população mundial residia nos países em desenvolvimento. Hoje são 82
por cento.
Mas no ano de 2050 serão 86%", disse à rádio pública norte-americana
NPR. "Esses países tendem a ser os países mais frágeis de um ponto de
vista político, económico, social e ambiental, pelo que a situação
pode refletir-se negativamente em muitos outros lugares" um pouco a
exemplo do que tem acontecido na Europa, com a chegada em massa de
imigrantes de África à ilha italiana de Lampedusa.
De 2004 para cá, o índice de preços alimentares da FAO mais do que
duplicou, enquanto os do petróleo iam de uns modestos 40 dólares o
barril em 2000 para um pico de quase 140 em 2008 (atualmente situa-se
acima dos 100 dólares um patamar tido como inatingível não assim há
tanto tempo). O planeta está a consumir mais recursos do que o
sustentável segundo a ONG World Wide Fund, por ano, 50% mais do que a
terra consegue suportar.
UM PLANETA EM STRESSE
Olhe-se para a água: em 2015 serão já 3 mil milhões a viverem em
países que sofrem de "stresse hídrico" aqueles em que a água
disponível per capita é menor do que a necessária para satisfazer
todas as necessidades alimentares, industriais e domésticas. Morrem
1,5 milhões de crianças com doenças relacionadas com falta de água e
saneamento.
Como a gestão humana (soviética) sobre o mar do Aral já demonstrou,
existe um limite a partir do qual a exploração dos aquíferos é
insustentável a ponto de não matar só um lago, ou um rio, mas boa
parte da atividade socioeconómica à sua volta. A situação é
especialmente má na Ásia, que tem mais de 60% da população mundial e
apenas 36% da água doce disponível no mundo.
Na China, por exemplo, uma fatia substancial da água usada para
regadio vem de fontes não sustentáveis, como a sobreexploração de
caudais subterrâneos e o desvio excessivo do caudal dos rios.
A parte final do rio Amarelo secou quase todos os anos entre 1972 e
hoje, com algumas exceções pontuais, e as águas subterrâneas do Norte
da China, onde se concentram 800 milhões de pessoas, podem mesmo
acabar até 2020.
Um sinal de que Pequim já percebeu o problema é ter começado a
importar quantidades massivas de soja ou de água, consoante o ponto de
vista do Brasil. Outra, é ter entrado na corrida às terras
"arrendadas" a outros estados, nomeadamente africanos (as aspas
devem-se ao facto de muitos desses países não terem legislação que
regule o uso ancestral e comunitário da terra agrícola e portanto os
agricultores locais se limitarem a ver de repente as suas terras
invadidas por maquinaria ao serviço de estrangeiros, com todo o
potencial de conflito que isso desencadeia. O fenómeno chama-se land
grabbing). Outros países, como a Arábia Saudita e a Coreia do Sul, já
entraram nesta corrida.
Calcula-se que na Índia que terá ultrapassado a China em população em
2025 pelo menos 25% por cento dos alimentos estejam a ser produzidos
com práticas não sustentáveis. O Médio Oriente e em particular a
Península Arábica também está sob enorme pressão. O National
Intelligence Council, dos Estados Unidos, há anos que vem alertando
para a escassez de água como fonte potencial de conflitos nas próximas
décadas a questão israelo-palestiniana é apenas um exemplo.
Há também sinais de que podemos estar perante uma crise crónica dos
alimentos por exemplo a Oxfam publicou a 1 de junho um relatório em
que prevê que o preço do milho subirá 86% até 2030, devido às mudanças
climáticas. Esta subida, aliada a outros fatores, fará com que o preço
das matérias-primas alimentares torne a duplicar nas duas próximas
décadas, pondo os Estados como a Tunísia, a Líbia, o Egito, a Síria e
o Iémen em causa. "Uma nova era de crise(s)" poderá levar "ao colapso
do sistema global de produção de comida", alerta a ONG.
CEREAIS: O NOVO PETRÓLEO
A alta dos preços da energia também está a por sob imensa pressão a agricultura.
Por um lado, os fertilizantes são em boa parte feitos à base de
nitrogénio sintético, que por sua vez necessita de gás natural cujos
preços são tremendamente instáveis e quase duplicaram na última
década. Por outro, os EUA, seguindo o exemplo brasileiro, destinam
agora quase um terço da sua produção de cereais para biocombustíveis.
Ou seja, os cereais passaram ser. uma espécie de petróleo e o seu
preço ligado ao da energia. Outra forma de dizer isto é, como faz a
Oxfam, "desviar a comida das bocas para o depósito dos carros". A
Oxfam relaciona também esta política com o fenómeno do land grabbing.
"Atingir os 10% de biocombustíveis na totalidade dos combustíveis
gastos em transportes, globalmente terá atirado mais 140 milhões de
pessoas para a pobreza em 2020." Para se ter uma ideia, na Europa
seria necessária uma área quase do tamanho de Portugal para se atingir
esse objetivo e a produção anual de dióxido de carbono equivaleria a
mais 26 milhões de carros.
A Oxfam acusa, ainda, a especulação com os preços dos alimentos de
estar a atingir níveis insustentáveis: só o Barclays Capital, um dos
grandes atores no mercado de derivados das matérias-primas alimentares
na Europa, terá ganho 406 milhões de euros nessa atividade, em 2010. O
investimento especulativo neste mercado terá subido de 15 mil milhões
de euros em 2003 para, pelo menos, 200 mil milhões, em 2008. (Outros
cálculos apontam para 317 mil milhões).
Como resultado da especulação, das alterações climáticas, da subida
dos preços da energia e de catástrofes naturais, os preços do milho,
do sorgo e do trigo, por exemplo, aumentaram mais de 70% entre junho e
dezembro de 2010 Daqui até 2043 altura em que seremos 9 mil milhões a
produção agrícola terá de subir 60% para satisfazer as necessidades
globais. Mas com as atuais tecnologias e partindo do pressuposto que
todas as condições são ideais ela aumentaria apenas 50%, segundo a
ONU. A procura de bens alimentares poderá subir entre 70% a 100%, até
chegarmos a meio do século estima um estudo feito em colaboração com o
Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, apresentado aos
ministros da Agricultura do G-20, em junho deste ano. Hoje, todos os
dias são acrescentadas 200 mil pessoas à mesa de jantar da Humanidade
e países como a Nigéria e o Burkina-Faso habilitam-se a triplicar as
respetivas populações, caso nada seja feito para baixar as taxas de
fecundidade.
Se a isto somarmos as mudanças climáticas, perto de 370 milhões de
pessoas ficam em situação de "insegurança alimentar", alerta ainda a
Oxfam.
Ou seja, quando nascer, Han viverá num mundo seriamente ameaçado...
http://aeiou.visao.pt/han-o-bebe-sete-mil-milhoes-havera-lugar-para-ele=f619898#ixzz1WdnOo9z2
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