quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Gastronomia molecular: Cientistas de garfo e faca

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29 de Fevereiro, 2012por Joana Ludovice de Andrade
«Portugal está na vanguarda da gastronomia», afirma quem deixou a
Arquitectura Paisagística para fazer os legumes saberem a fruta.
Experiências na cozinha da CookingLab.
A expectativa era ver tubos de ensaio, recipientes fumegantes e muita
parafernália complicada e habitual num laboratório. Em vez disso, num
workshop dedicado a gastronomia molecular, o SOL encontra uma cozinha
igual a tantas outras: com placa, micro-ondas e algumas
varinhas-mágicas.
O entusiasmo dos dez inscritos na 'aula' da CookingLab – uma equipa de
cientistas e investigadores de gastronomia molecular – sente-se no ar;
os sorrisos, mesmo no rosto dos repetentes, espelham a curiosidade
pelo que se vai passar. As formações e os motivos de cada participante
não podem ser mais diferentes: químicos, professores de gastronomia,
pasteleiros, técnicos de medicina dentária, futuros chefs ou
simplesmente curiosos.

Joana Moura e Catarina Dias Pereira, da CookingLab, fazem as honras da
casa e, vestidas com uma jaleca moderna, desvendam o segredo de fazer
pipocas sem milho. Os olhos arregalam-se enquanto Catarina atira para
o óleo pedaços de pele liofilizada de leitão – em contacto com o calor
fazem estalidos. Depois de secas temperam-se com sal e pimentão-doce e
é impossível resistir-lhes. Aliás, já se ouve a explicação da receita
seguinte e ainda se petiscam as pipocas, aqui e ali.
O segundo prato é um caldo líquido de camarão transformado em sopa
mais grossa apenas com a utilização de goma xantana, obtida a partir
da fermentação de amido com a ajuda de uma bactéria que existe nas
folhas das couves.
Na cozinha dita mais tradicional é vulgar engrossar molhos com a
velhinha farinha Maizena, que tem a grande desvantagem de formar
grumos estragando a textura do molho, assim como deixa passar a cor e
o sabor para os pratos.
O caso da xantana é diferente: esta goma é incolor e não 'empresta'
qualquer sabor ao prato. Não tendo de ser cozinhada, pode ser
dissolvida a quente ou a frio apenas com uma varinha-mágica. Em poucos
segundos, o caldo, completamente líquido e aguado, adquire uma textura
espessa, que quase segura a colher de pé.
Da ementa consta ainda a sobremesa, que promete desafiar e estimular
os sentidos. Ou, pelo menos a visão – uma bola perfeita, que se pensa
ser feita de gelado. Quando se leva à boca, as suspeitas confirmam-se:
é realmente gelado, porém, quente. Por mais contraditório que possa
parecer.
A surpresa deve-se a um gelificante que actua com o calor, ao
contrário das tradicionais gelatinas que precisam do frio para
solidificar.
Chama-se metilcelulose, é produzida a partir de celulose vegetal e é
usada também em medicamentos e na cosmética, como espessante,
estabilizador de espumas e emulsões, e para conferir viscosidade. No
entanto, para Joana Moura e Catarina Dias Pereira, uma das utilizações
mais interessantes é na preparação destes 'gelados quentes' que
derretem à medida que vão arrefecendo. Para gelificar é preciso
aquecer entre os 50 e os 70 ºC, abaixo dos 40 ºC volta a
liquefazer-se.
A rapidez e o desembaraço com que os participantes seguem as receitas
provam que não são precisos passos de magia para fazer caviar de
chocolate ou fazer os legumes saberem a fruta. Basta combinar ciência
e gastronomia na sua própria cozinha, ter alguns ingredientes
especiais e aprender os truques com a CookingLab.
«Portugal também está na vanguarda da gastronomia», revela ao SOL
Joana Moura. Já não são só meia dúzia de chefs como Ferran Adrià ou
Heston Blumenthal que sabem brincar às texturas e aos sabores, e isso
é o objectivo da criação da CookingLab que, para Joana, nasceu da sua
paixão pela arte, apurada por um diploma em Arquitectura Paisagística
e por uma pós-graduação em Design. Actividades que deixou ao 'fugir'
para Paris, onde tirou um curso de cozinha e começou uma nova vida,
com projectos que nada têm que ver com organização de espaços e
estética. Ou têm?
Nascida numa família de químicos, há seis anos decidiu combinar as
aptidões artísticas e científicas e os seus gostos culinários e pô-los
a uso na investigação da gastronomia molecular. «Trata-se de um ramo
da ciência que diz respeito aos alimentos, não de um tipo de comida».
Hoje, uma refeição pode transformar-se num «estímulo semelhante a uma
ida ao teatro», considera. «Um prato pode provocar sensações. Nada é o
que parece, existe um efeito surpresa que as pessoas procuram e
encontram aqui».
Os fios de esparguete de sumos de fruta ou de vinhos espirituosos
fazem sempre as delícias de quem aprende a fazê-los ou de quem os
prova pela primeira vez. «É, de facto, um dos pratos mais populares
dos workshops», conta Catarina Dias Pereira, responsável por ensinar
os truques da ciência para a comida.
As experiências no laboratório da CookingLab, com sede no Instituto
Superior de Agronomia, em Lisboa, o apadrinhamento do francês Hervé
This (um dos pais desta ciência) e os prémios ganhos a nível
internacional levaram a que o conceito se expandisse além da
investigação e dos workshops.
Actualmente, existe uma loja online, que vende os ingredientes e os
utensílios necessários para ser um aprendiz de cientista/gastrónomo.
Criaram também a Unique Food Events, direccionada para jantares
temáticos e demonstrações, e lançaram o livro Cozinha com Ciência e
Arte, a caminho da segunda edição.
As viagens são outra parte da aprendizagem e formação desta equipa de
cientistas. Recentemente, Joana Moura descobriu um fruto no Japão que
altera o paladar dos alimentos amargos.
Se comermos um bocadinho do pó deste fruto minutos antes de comer é
possível que um citrino muito ácido nos pareça doce. «O fruto contém
uma proteína que liga as papilas gustativas e aumenta a percepção do
doce», explica, entusiasmada.
joana.andrade@sol.pt
http://sol.sapo.pt/inicio/Vida/Interior.aspx?content_id=42781

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