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Por Rui Falcão
19.11.2011
E se alguém lhe dissesse que um dos principais vinhos de culto
australianos assenta exclusivamente em castas nacionais (Touriga
Nacional, Tinto Cão, Tinta Amarela, Tinta Roriz, Sousão e Alvarelhão),
acreditaria?
Apesar do inegável orgulho que sentimos pelas castas nacionais, pelas
variedades portuguesas que são únicas no mundo, pelo vasto património
genético que a natureza teve a bondade de nos oferecer e que o nosso
isolamento político e geográfico permitiu perpetuar durante tantos
anos, a verdade é que estamos cada vez mais dispostos a avaliar outras
variedades, a experimentar castas provenientes de outras regiões e de
outros países, ensaiando novas propostas com castas estranhas à
realidade nacional.
Nomes como Syrah, Petit Verdot, Viognier ou Chardonnay há muito que
deixaram de ser raros ou exóticos em Portugal, fazendo hoje parte do
encepamento natural de muitas regiões nacionais, sem dramas e de forma
transparente. Até mesmo a casta Alicante Bouschet, considerada como um
dos expoentes máximos da viticultura nacional, assenta a sua
existência numa paternidade discutível que, consoante as
interpretações, poderá ser considerada como de génese francesa ou,
numa alternativa mais nacionalista, como uma casta apátrida por
resultar de um cruzamento forçado em laboratório.
E se hoje, nós, portugueses, apesar de determos um património
ampelográfico tão rico, aproveitamos de forma legítima castas de
outros países, é de esperar que os restantes países aspirem a fazer o
mesmo com as nossas melhores variedades, com as castas portuguesas que
tornam os nossos vinhos tão singulares. Por isso é escusado, e
redutor, querer lutar pela posse de uma casta, batalhar pela
substituição de nomes de castas ou pretender que as castas nacionais
se mantenham de uso exclusivo lusitano, sem direito a expressão
internacional.
É certo e sabido que as nossas melhores variedades começam a
internacionalizar-se, que se irão cosmopolizar ainda mais num futuro
próximo, e que não é utópico que um grupo restrito delas possam mesmo
acabar por transformar-se em autênticas estrelas internacionais.
Realidade que é hoje já hoje visível com a casta mais mediática e
admirada de Portugal, a Touriga Nacional, variedade onde a procissão
já saiu do adro da igreja, sendo hoje claro que a Touriga Nacional
começa a conquistar protagonismo crescente nas vinhas de Espanha,
Argentina, Austrália, África do Sul e Califórnia, fazendo parte dos
estudos e ensaios que muitos produtores celebram nas várias regiões de
muitos países europeus e do novo mundo.
E é precisamente de um desses países que adoptou de forma entusiasta a
Touriga Nacional, a Austrália, que advém um dos vinhos mais
perturbantes que tive ocasião de provar nos últimos meses, o Yarra
Yering Dry Red No. 3. Um vinho original e de nome misterioso de um dos
produtores mais interessantes e singulares da Austrália, Bailey
Carrodus, fundador da Yarra Yering, um dos nomes maiores do vinho
australiano, um dos raros que nunca se deixou guiar por modas.
Falecido em 2008, Bailey Carrodus foi um dos grandes viticultores e
enólogos da Austrália, sempre discreto, fechado no seu mundo, vivendo
de cabeça, corpo e alma para as suas vinhas e os seus vinhos.
Duplamente licenciado, em botânica e em enologia, mestre pela
universidade de Victoria, doutorado em fisiologia das plantas pela
universidade de Oxford, professor de botânica e investigador nas
universidades de Adelaide e Melbourne, Bailey Carrodus resolveu
abdicar da sua vivência académica brilhante para se dedicar por
inteiro às suas duas grandes paixões, a vinha e a enologia.
Adoptando um exercício em tudo semelhante na prática e filosofia à
epopeia de José Ramos Pinto Rosas na descoberta da Quinta da
Ervamoira, Bailey Carrodus socorreu-se de cartas militares para
desencantar o local onde queria plantar as suas vinhas, na velha,
fresca e abandonada região de Yarra Valley, desconsiderada desde
finais do século XIX aquando de uma das muitas depressões que
ciclicamente se abateu sobre as vinhas australianas.
Em 1969 plantou 12 hectares de vinha nas encostas viradas a Norte de
Warramate Hills, abstraindo-se de utilizar rega, um anátema para as
práticas australianas, sem correcção de solos, seguindo os ideais
estéticos de que menos é mais, deixando que os vinhos se fizessem numa
vinha com o mínimo de intervenção possível. Maníaco do detalhe e
terrivelmente exigente, obstinado como poucos, Bailey Carrodus ficou
famoso pela quantidade de vinho rejeitado, aprovando uma percentagem
muito pequena da produção para os seus dois vinhos estandarte, os
famosos Yarra Yering Dry Red No. 1 e Yarra Yering Dry Red No. 2,
respectivamente um lote de Cabernet Sauvignon, Malbec, Merlot e Petit
Verdot, e um lote de Shiraz, Viognier e Marsanne, pequenas produções
que rapidamente se instituíram entre os mais caros e afamados da
Austrália, transformando-se em vinhos de culto.
Foi só muito mais tarde, quando conseguiu ampliar a vinha inicial para
os 28 hectares, adquirindo pequenas parcelas adjacentes mais
soalheiras, que Bailey Carrodus se dispôs a experimentar novas castas,
principiando a aventura pelas italianas, plantando Barbera, Sangiovese
e Nebbiolo, acelerando em seguida para as castas portuguesas,
apalpando a Touriga Nacional, Tinto Cão, Tinta Amarela (Trincadeira),
Tinta Roriz, Sousão e Alvarelhão. Como se compreenderá da escolha das
castas, a intenção inicial de Bailey Carrodus transitava pela vontade
de fazer um vinho do estilo Porto... mas cedo se apercebeu do enorme
potencial das castas nacionais, desviando-as de imediato para um vinho
tinto a que veio a chamar Yarra Yering Dry Red No. 3, precisamente com
um lote destas seis castas portuguesas, com um domínio claro da
Touriga Nacional que perfaz mais de dois terços do lote.
Com rendimentos baixíssimos, cerca de quatro toneladas por hectare
face à média nacional australiana de 12 toneladas por hectare, a vinha
plantada com as variedades nacionais foi promovida a estrela da
companhia. O Yarra Yering Dry Red No. 3 da colheita 2008 é seguramente
um dos vinhos australianos mais originais que provei, preto na cor e
rico e sóbrio no nariz, carregado de fruta madura mas elegante,
acompanhado por uma frescura épica e uns taninos sérios mas luzidios e
bem-educados. Uma raridade que, apesar de alguma sensação de
familiaridade com alguns vinhos do Douro, revela identidade e
argumentos próprios para se diferenciar.
Afinal, apesar de este ser um dos primeiros vinhos australianos a
estampar de forma clara o nome de castas portuguesas no rótulo, é
apenas um dos muitos que começam agora a surgir. E não são só as
castas tintas nacionais que começam a mostrar os seus dentes e
argumentos na Austrália...
http://fugas.publico.pt/vinhos/296841_o-mais-portugues-dos-vinhos-australianos?pagina=-1
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