Mário Cláudio (www.expresso.pt)
18:00 Sexta feira, 23 de setembro de 2011
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O consumo do vinho aculturou-se a tal ponto, tornando-se de tal forma
expressão de moda, e indício de status, que não tardará que se
converta o ritual que o acompanha em exclusivo substituto da sua
simples fruição. A esta luz um saudoso slogan do passado
pré-revolucionário, Beber Vinho É Dar de Comer a um Milhão de
Portugueses, espanta-nos agora pela sua ingénua boçalidade. Afixado no
interior dos transportes públicos, e desencadeando o escândalo dos
turistas que nos visitavam, procedentes de países onde as campanhas
eram já no sentido da moderação, semelhante cartaz aparece-nos hoje
não menos cafona do que o aviso "Não Cuspa no Chão", ou "É Proibido
Falar Mal".
Nos dias que vão correndo qualquer bicho-careta se arroga uma ciência
enológica que aterroriza os simplórios, situando-se afoitamente na
galeria dos refinados epicuristas, tão seguros do seu gosto vinícola
como dos méritos e deméritos do treinador da equipa do seu extremado
clube. Só que na maioria dos casos não acerta a bota com a perdigota,
e o esforço de arvorar um saber consumado redunda em gagues
picarescos, quando não na expressão da mais rematada patetice. Tenho
assistido em restaurantes a cenas inesquecíveis, e aproveitáveis para
exemplares rúbricas do tratado de Sociologia mais elementar, conforme
se deduzirá do parágrafo a seguir.
Vi um sujeito verter na boca o seu gole de maduro tinto, bochechar
atentamente como exímio provador, e devolver ao copo o "precioso
néctar", de nariz torcido, e reclamando um "produto diverso, mas de
preferência mais caro". E há pouco ainda, fiquei estupefacto com a
cachopa dos seus dez anos incompletos, mas dessas a quem o pai
desvanecidamente trata por "a minha princesinha", e a mãe
despachadamente por "filhota", sustentar como proficiente escanção o
vaso cristalino pelo pé, erguê-lo para estudar a cor da lágrima,
aspirar com alguma desconfiança o bouquet, mastigar a amostra, e
encolher os ombros num "Serve..." entre desiludida e resignada.
Estranhar-se-á assim que se recomende aos nossos cidadãos-enólogos
que, tirando partido da crise, comecem a educar as suas excitações?
Também por via de tudo isto residirá no vinho a verdade, a de quantos
querem, mas não podem, e a de quantos só por fora crescem
desmesuradamente.
http://aeiou.expresso.pt/os-enologos=f675998#ixzz1YoAcnAdK
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