O canadiano William Cosgrove foi vice-presidente do Banco Mundial e
presidente do Conselho Mundial da Água, sendo considerado um dos
maiores especialistas mundiais nas questões relacionadas com este
recurso natural.
Virgílio Azevedo (texto) e José Ventura (fotos) (www.expresso.pt)
18:23 Segunda feira, 20 de junho de 2011
"Há muita gente a viver na pobreza e para acabar com ela é necessário
muita água"
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William Cosgrove é atualmente presidente da empresa Ecoconsult Inc. e
consultor para a elaboração do 4º Relatório das Nações Unidas sobre o
Desenvolvimento Mundial da Água. No dia 15 de junho deu uma
conferência na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, sobre "Cenários da Água
para um Desenvolvimento Sustentável", no âmbito dos trabalhos do
"Think Tank Gulbenkian sobre a Água e o Futuro da Humanidade", uma
organização dedicada à reflexão sobre as políticas e os problemas que
envolvem este recurso, que foi criada pela Fundação Gulbenkian em
setembro de 2010 e é coordenada por Luís Veiga da Cunha, professor da
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Defende que a redução da pobreza no mundo está relacionada com a água. Porquê?
Jimmy Carter, Prémio Nobel da Paz, disse um dia que a fonte da maior
parte dos problemas do mundo era a grande diferença entre ricos e
pobres. Para ajudar os pobres a sair da pobreza a ONU concebeu os
Objetivos de Desenvolvimento do Milénio até 2015, mas quando olhamos
para eles concluímos que não é possível alcançá-los sem água. A água é
a chave para um desenvolvimento sustentável equitativo.
Como quantificamos essa pobreza?
Há o conceito de pobreza extrema, onde cada pessoa vive com menos de
1,25 dólares (0,90 euros) por dia. Na África Subsariana isso
corresponde a 40% da população e no Sudeste Asiático e Pacífico a 25%.
Mas se formos um pouco mais longe e falarmos das pessoas que vivem com
apenas dois dólares por dia (1,5 euros), estamos a falar em 75% da
população de África Subsariana e do Sul da Ásia e em 50% da população
do Sudeste Asiático e Pacífico. É muita gente a viver na pobreza e
para acabar com ela é necessário muita água. Para se alcançar o
primeiro objetivo da ONU - aumentar os rendimentos de modo a que
metade das pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza saia dela -
uma das primeiras medidas é aumentar a produtividade da agricultura, o
que só pode ser feito com mais água.
O mesmo se passa quanto aos outros Objetivos de Desenvolvimento do Milénio?
Sim. Mas reduzir o número de pessoas com fome de 1000 milhões para 700
milhões - que mesmo assim ainda é muita gente - é um longo caminho,
devido ao recente aumento dos preços dos alimentos. Quanto a outros
objetivos da ONU, como melhorar o nível de saúde e reduzir as doenças,
promover a igualdade do género, proteger o ambiente, todos eles
envolvem o uso de mais água.
A água implica problemas de gestão complexos? Há problemas de gestão e
de governação. A água é usada a nível local, mas quando falamos de
águas transfronteiriças (rios, lagos, lençóis freáticos), 40% da
população mundial vive em bacias hidrográficas que pertencem a mais do
que um país. Portanto tem de haver cooperação internacional nestas
bacias para se gerir este recurso. O problema é que as fronteiras
políticas e administrativas, mesmo dentro de cada país, não coincidem
com as fronteiras naturais que controlam a água. As populações
percebem muito bem quais são as fronteiras políticas e administrativas
a nível local, regional ou nacional, mas a maior parte das pessoas não
sabe quais são as fronteiras naturais da água.
Uma questão global que precisa de políticas globais
"Os países pobres que não têm água são um problema global, que precisa
de ser resolvido por instituições globais e políticas globais"
A água é então essencial para o desenvolvimento sustentável, tanto nos
países ricos como nos pobres?
Obviamente. Um país pobre que tem água pode ser ajudado a satisfazer
as suas necessidades através de empréstimos para a construção de
infraestruturas. Mas se esse país não tem água suficiente, é
necessário um sistema de comércio global que lhe dê vantagens para
produzir bens que não necessitem de tanta água. Com a venda desses
bens pode então comprar outros que precisam de muita água para ser
produzidos, como os alimentos. Portanto, os países pobres que não têm
água são um problema global, que precisa de ser resolvido por
instituições globais e políticas globais.
As preocupações do público e dos decisores políticos sobre o
aquecimento global e a energia são muito maiores do que sobre uma
possível crise global da água. Porquê? Os recursos energéticos têm um
preço de mercado, têm um valor, podem ser comprados e vendidos e por
isso as pessoas dão-lhes atenção. Na maioria dos casos a água é
consumida no pressuposto de que, aconteça o que acontecer, haverá
sempre em quantidade suficiente para as necessidades e não haverá
problemas. Ora só será assim se a gerirmos bem, porque não há água
suficiente em todas as regiões do planeta. Há zonas na Terra que têm
água que chegue, outras que por vezes têm água a mais - quando há
cheias - ou a menos - quando há secas -, e outras que nunca têm água
suficiente para as suas necessidades. É este desequilíbrio que exige
uma intervenção internacional e uma gestão global.
A perceção dominante entre a opinião pública é que a água é um recurso
renovável?
Globalmente é um recurso renovável, mas a nível regional e local, ou
em certos períodos de tempo (época das secas), pode não ser. Neste
momento há uma seca na Europa e esta região não vai produzir tantos
alimentos como num ano normal, o que significa que tem de os importar
de algum lado. Poderá ser do Brasil ou da Ucrânia. Ou mesmo do Canadá,
onde o aquecimento global está provocar mais chuvas e melhores
colheitas.
O grande problema das alterações climáticas
"O grande problema que resulta das alterações climáticas é a escassez de água"
Há analistas que defendem que o impacto de uma crise na água poderá
ser pior do que uma crise climática. Porquê?
Os cientistas que estão a analisar as alterações climáticas usam as
subidas de temperatura, porque podem ser medidas, para explicar este
fenómeno ao público em geral. Todas as discussões sobre alterações
climáticas giram à volta da temperatura, do aquecimento global. Mas o
aquecimento global não é, na verdade, o grande problema que resulta
das alterações climáticas. O grande problema é a escassez de água, que
está relacionada com o ciclo hidrológico e com o aumento da
variabilidade na precipitação. Vamos ter cada vez mais inundações e
cada vez mais secas, o que criará instabilidade em todo o sistema. E a
maior parte desta instabilidade vai acontecer no mundo em
desenvolvimento. Se olharmos para o mapa-mundo e procurarmos onde a
variabilidade climática está a aumentar é precisamente onde há
problemas de falta de água e onde a maior parte dos pobres do mundo
vive. É por isso que o Pentágono classifica a segurança do
abastecimento de água como um problema global de segurança. Se
olharmos para os problemas atuais do Médio Oriente, a sua origem está
na capacidade desta região para comprar alimentos, porque não tem água
suficiente para os produzir no seu território, estando por isso
sujeita aos preços internacionais dos produtos alimentares, que estão
neste momento no seu nível mais alto da História.
Está preocupado com o consumo de água na Europa, em especial na região
mediterrânica?
Sim. A região mediterrânica é, provavelmente, a primeira região do
mundo onde as capacidades já foram ultrapassadas. Há dez anos, por
exemplo, o Médio Oriente estava a importar água virtual (gasta na
produção de alimentos e outros bens de consumo importados) a um nível
que excedia o total do caudal do Rio Nilo. É uma região que já não
consegue alimentar a sua população sem importações, o que a torna
dependente do mercado mundial de alimentos. A Argélia, por exemplo,
importa bens, a maior parte agrícolas, que precisaram de duas vezes a
água que o país tem para serem produzidos. Noutras regiões do mundo
também há bons exemplos do que significa o consumo de água virtual. No
Japão, os bens que são importados precisaram de 4,5 vezes a água que o
país tem para serem produzidos.
E quanto ao resto da Europa?
Se continuar a variabilidade climática, alguns países do resto da
Europa vão ter também problemas de escassez de água.
O ciclo global da água está a mudar?
A quantidade de água que existe hoje é a mesma que existia quando a
Terra se formou. O que está a acontecer é que a distribuição da água
está a mudar com as alterações climáticas. Mas para além desta
questão, dois fatores estão a provocar a escassez da água: o rápido
crescimento da população em certas regiões do mundo, que precisam de
mais água por causa do aumento da procura de alimentos e bens de
consumo; e o desenvolvimento de regiões que antes eram pobres, porque
a sua população começa a ter rendimentos para comprar mais alimentos e
bens que consomem água. É um duplo efeito que está a influenciar a
escassez de água a nível local em certas regiões do mundo.
Investimentos na água prejudicados pela crise
"A crise teve um efeito negativo nos investimentos destinados à água"
Os recursos financeiros que estão a ser usados para a recuperação
económica da Europa esqueceram os investimentos destinados a evitar
uma crise da água?
A crise teve sem dúvida um efeito negativo nesses investimentos. Mas
houve um problema. Em 2000 fui um dos autores do relatório sobre a
quantidade de dinheiro que seria necessária para investir em
infraestruturas de água para responder às necessidades da população
mundial. O investimento atual, 11 anos depois, é apenas uma fração
desse dinheiro e mesmo nos países ricos a água foi esquecida. Com a
crise financeira tornou-se tudo ainda mais difícil porque os governos
estão a adiar investimentos nesta área. Uma das esperanças que temos é
que os decisores políticos venham a reconhecer que a mitigação e a
adaptação às alterações climáticas deve passar pela água, em especial
a água que vai ser afetada por essas alterações, o que vai exigir a
construção de novas infraestruturas.
Cerca de 70% da água consumida no mundo diz respeito à agricultura,
mas há limites para a redução deste consumo através do uso de
tecnologias e políticas destinadas a aumentar a eficiência. Estamos
perante um problema sem solução?
Não. Há muitas soluções e algumas são tecnológicas. Por exemplo, a
dessalinização é viável, talvez ainda não para a agricultura de hoje,
mas se os preços dos alimentos aumentarem, o que é expectável, poderá
tornar-se mais económico recorrer a este processo, apesar dos custos
da energia. Outro exemplo é que há culturas que poderão crescer com
água salgada ou mesmo nos oceanos. Uma das coisas que está a ser
estudada neste momento é o crescimento de algas na água do mar ou em
água salgada para serem usadas na produção de biocombustíveis, o que
reduziria a procura de terras agrícolas e culturas para esse fim. Há
também muitas tecnologias que estão a ser desenvolvidas, e que são
contestadas na Europa, para alterar geneticamente as plantas de modo a
serem mais resistentes às doenças e às secas, permitindo elevados
níveis de produção.
E quanto às práticas agrícolas?
O uso das melhores práticas agrícolas em regiões que ainda não o fazem
nos países em desenvolvimento, pode duplicar ou triplicar os níveis de
produtividade atuais. Há, de facto, muitas soluções do lado da
produção. Mas também se pode reduzir a procura de alimentos, porque
estamos a produzir cada vez mais alimentos que são mais do que
suficientes para alimentar todo o mundo. Temos 1,5 mil milhões de
pessoas com excesso de peso contra mil milhões subalimentadas. Além
disso, as estatísticas mostram que, desde o momento em que as
colheitas são feitas até ao consumo dos produtos alimentares, metade
do que produzimos é desperdiçado pelo caminho. Portanto, melhorando a
cadeia alimentar, a cadeia de produção e de distribuição, é possível
reduzir a procura de alimentos. Por outro lado, é possível levar as
pessoas a mudar a sua dieta face aos níveis de obesidade a que
chegámos, tendo uma vida mais saudável e consumindo menos alimentos, o
que significa consumir menos água.
As carências de água nas economias emergentes como a China e a Índia
podem ser uma barreira ao desenvolvimento?
Sim. Durante a última década, os chineses começaram a produzir mais
alimentos com a mesma quantidade de água que usavam antes.
Reconheceram os problemas que têm com a água e começaram a adotar
tecnologias mais eficientes na agricultura e noutras áreas, o que é um
sinal positivo. A China apenas importa 8% de produtos agrícolas, mas é
um país tão grande que um aumento de 1% ou 2% tem um efeito no mercado
global que pode ser muito importante. Em parte por causa disso, a
China e vários países do Médio Oriente estão a comprar terras noutros
países em desenvolvimento, porque assim podem garantir a produção dos
alimentos que necessitam fora do seu próprio país. Mas ao mesmo tempo
que compram terras compram a água que existe nelas, e estou certo que,
muitas vezes, obterem água é mais importante que obterem terra.
http://aeiou.expresso.pt/a-agua-e-a-chave-para-reduzir-a-pobreza=f656626
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