sábado, 22 de agosto de 2015

A família alemã que está a reinventar o vinho alentejano

HISTÓRIAS DE AGOSTO
por Leonídio Paulo Ferreira16 agosto 2015Comentar

Dorina Lindemann, com a cadela Cloe ao colo, e rodeada pelas filhas Júlia e Luísa. A antiga Quinta do Vinagre, junto a Montemor-o-Novo, foi rebatizada pela família alemã de Quinta de São Jorge (como Jorge Böhm, o patriarca) e tem hoje 110 hectares, 85 dos quais de vinha.  Inovadora, Dorina usa castas do Norte de Portugal para produzir vinhos alentejanos, conseguindo exportar 90% da produção. Um caso de sucesso
Dorina Lindemann, com a cadela Cloe ao colo, e rodeada pelas filhas Júlia e Luísa. A antiga Quinta do Vinagre, junto a Montemor-o-Novo, foi rebatizada pela família alemã de Quinta de São Jorge (como Jorge Böhm, o patriarca) e tem hoje 110 hectares, 85 dos quais de vinha. Inovadora, Dorina usa castas do Norte de Portugal para produzir vinhos alentejanos, conseguindo exportar 90% da produção. Um caso de sucesso Fotografia © Diana Quintela / Global Imagens
Tudo começa em 1961 com um jovem alemão que naufraga em Portugal e se apaixona pelo país. Herdeiro de uma empresa centenária dedicada ao negócios de vinhos, Jorge Böhm torna-se um especialista em castas portuguesas e passa o amor pelas vinhas à filha Dorina Lindemann. Esta e as filhas Júlia e Luísa são hoje famosas em Montemor-o-Novo.
Dorina caminha ágil por entre as vinhas carregadas de cachos, procurando que os pés não tropecem nem nos torrões de terra nem na pequena Cleo, a única das três cadelas da família Lindemann que escapou a ter nome de casta. As outras são a Barroca, bem maior do que a Cleo e que já deu um ar da sua graça nesta manhã, e a Touriga, "que está no veterinário", explica a alemã que produz vinhos em Montemor-o-Novo há duas décadas e é apaixonada por Portugal desde criança, quando vinha passar férias com os pais e o irmão. "Numa casa em Colares, que ainda lá está, mas já não é nossa", sublinha.
Aqui é preciso um parêntesis: Dorina Lindemman é filha de Jorge (nascido Hans Jörg) Böhm, que naufragou em Cascais em 1961 quando tentava fazer uma volta ao mundo. Ficou mais tempo do que era preciso para tentar reparar o veleiro, e a partir daí, com um pé em Portugal e outro na Alemanha, até os dois assentarem mesmo por cá, foi-se interessando por tudo que tinha que ver com as vinhas e o vinho português; e a ponto de se ter tornado um reputado especialista.
"O meu pai sabe tudo, mas mesmo tudo, sobre as castas portuguesas", afirma Dorina. Se fosse preciso certificação de que não se trata só de orgulho filial, aí está O Grande Livro das Castas, com a primeira edição em 2007, e a comenda da Ordem de Mérito Agrícola concedida em 2006 pelo presidente Jorge Sampaio. A Böhm foi também dada a nacionalidade portuguesa.
Economista e enólogo, Jorge Böhm tem 77 anos e desde os 23 está ligado a Portugal. Destacou-se por selecionar e catalogar as castas de vinho portuguesas
Economista e enólogo, Jorge Böhm tem 77 anos e desde os 23 está ligado a Portugal. Destacou-se por selecionar e catalogar as castas de vinho portuguesas
As ruínas do Castelo de Montemor-o-Novo avistam-se não muito longe, como se fossem o pano de fundo ideal para um terreno cheio de vinhas quase prontas a ser vindimadas. Afinal, a Quinta de São Jorge (como Böhm) fica a meia dúzia de quilómetros da cidade alentejana, onde toda a gente fala dos "alemães dos vinhos" e ainda mais dos "vinhos dos alemães".
Hoje quem manda naquelas terras, "que chegaram a chamar-se Quinta do Vinagre, mas logo lhe mudámos o nome, claro", é Dorina, de 49 anos, mãe de duas filhas, que teve de arregaçar as mangas (e muito) para salvar a empresa Quinta da Plansel quando o marido, morreu, pois as dívidas acumulavam-se. Renegociou com os bancos e conseguiu um sócio, Karl Heinz Stock, também um alemão apaixonado por Portugal, e que mesmo dono de 50% dá carta-branca a Dorina no negócio dos vinhos. Nos últimos anos "as coisas têm corrido bastante melhor", com projetos para alargar a quinta, que tem 110 hectares, 85 de vinha." Solo bom. Pesado. Vigoroso. Por baixo com granitos e xisto", garante a alemã a quem, desconhecedor dos segredos da agricultura, só vislumbra terra vermelha.
Dorina pede a uma das filhas que segure Cloe. São duas, altas, elegantes e loiras como a mãe. Júlia tem 21 anos, Luísa 19. Fizeram a escola toda em Montemor-o-Novo e falam um português impecável, "ao contrário de mim, que nunca perdi o sotaque alemão", diz por entre risos a matriarca. Ambas sempre viveram em Portugal, tendo nascido depois de a mãe e o pai terem decidido fixar-se no Alentejo, onde o avô Jorge criara os viveiros Plansel - Plantas Selecionadas, aos quais ainda hoje dedica toda a atenção e são um dos segredos do sucesso da Quinta de São Jorge (a que os montemorenses mais velhos chamam "quinta do alemão") e dos vinhos da família.
"O segredo da diferenciação dos nossos vinhos reside, em grande parte, na capacidade de termos encontrado as castas indicadas a serem trabalhadas nesta região com condições climáticas tão especiais. Nós trabalhamos muito com as castas do Norte e somos inclusive os únicos no Alentejo a trabalhar com a Tinta Barroca. Todos os nossos vinhos têm um traço feminino, suave, redondo. Isto resulta do nosso terroir único ", explica Dorina, que além de empresária é enóloga.
E acrescenta: "Aqui, em Montemor-o-Novo, devido à vizinha serra de Monfurado e a alguma influência marítima, existe um microclima específico, com uma maior precipitação e temperaturas ligeiramente mais amenas. Isso permite que as uvas se desenvolvam mais refinadas e aromáticas e confere excelentes características aos nossos vinhos."
Fiel à tradição familiar (que vem desde o século XIX, com antepassados a terem uma empresa de importação de vinhos), Luísa prepara-se também para ser enóloga. Esteve já na Alemanha a fazer um estágio de seis meses, dentro de dias volta a partir, vai tirar o curso na Universidade de Geisenheim.
De calças de ganga e T-shirt preta (como a mãe e a irmã, mas estas com o logótipo da empresa), Luísa caminha por entre as vinhas com a segurança de quem está habituada a lidar com o campo. "O interesse surge por volta dos 15 anos quando comecei a ajudar na adega, principalmente no tempo da vindima. Intensificou-se ainda mais após fazer o estágio numa adega, na Alemanha, onde adquiri novos conhecimentos sobre o mundo dos vinhos. Tudo isto aliado ao sonho de querer seguir os passos de uma mulher da qual muito me orgulho, a minha mãe, que fez que eu quisesse seguir este caminho da enologia", diz. E Júlia, que vai começar em setembro, em Lisboa, o segundo ano da licenciatura em Marketing, na Universidade Europeia, também está dentro do espírito: "Desde pequena que estou habituada a estar envolvida na adega, e como o marketing se revelou uma paixão, pensei em aliar estas duas vertentes da minha vida."
Dorina Lindemann, na adega 
Dorina Lindemann, na adega Fotografia © Diana Quintela / Global Imagens
Dorina não esconde o orgulho nas filhas, com quem partilha evidente camaradagem. E até deu o nome de ambas a vinhos. O Luísa Lindemann é um frisante; o Júlia Lindemann, um tinto. E como é a sensação de se dar nome a um vinho? "É uma grande honra! E é ainda mais por saber que é um vinho com uma excelente aceitação no mercado nacional como no internacional", responde Luísa. "A primeira vez que soube que iria ter um vinho com o meu nome foi uma surpresa. Senti-me muito feliz e honrada por a minha mãe me ter feito esta homenagem, ainda para mais porque durante a época de vindima participei no processo de fermentação em barrica, sem saber que aquele iria ser o meu vinho", diz Júlia.
Estacionado o pequeno jipe que usa para percorrer a quinta (um Volkswagen, que isto da fidelidade à tecnologia alemã não se perde mesmo após muitos anos fora), Dorina mostra a adega e depois a casa da família, onde uma sala enorme serve de galeria para a coleção de pintura que ao longo dos anos Jorge Böhm tem adquirido. Com marcação, a família organiza também jantares na quinta (com direito a ver as obras de arte) e há ideias para avançar com um turismo rural. A Quinta de São Jorge até tem uma velha capela, dedicada a Santa Margarida. Está bem conservada, com linhas azuis a pontuar o branco da cal, e o segredo, sublinha Dorina, "é que é do padre, mas nós pintamos e cuidamos dela".
É numa mesa de madeira cá fora, mas à sombra pois no Alentejo o verão chega a ser de 40 graus, que a conversa continua. Conta Dorina que da produção anual de 350 mil a 400 mil garrafas, "uns 90% destinam-se à exportação". Vende para o Brasil, também para a China, mas especialmente para a Alemanha, onde é uma grande embaixadora dos vinhos portugueses. "Vou a feiras, faço palestras, e não falo só dos meus vinhos. Falo dos vinhos portugueses, de como temos a melhor variedade de uva, o melhor solo, castas únicas, de paladar único", relata com entusiasmo Dorina. E sobre as suas três castas de eleição, não poupa os elogios: "A Touriga Nacional é as duas faces de Portugal. A feminilidade: beleza e floral. A masculinidade: complexo e sedutor. É uma casta real, elegante e harmoniosa. A Touriga Franca é o machão cowboy português. Repleto com frutos vermelhos e taninos aveludados é poderosa, masculina e selvagem. Já a Tinta Barroca é Rubens: encorpado, doce, feminina, sensual, frutado."
O resultado (que começou a nascer em 1997 com a ajuda da Universidade de Évora e do enólogo Paulo Laureano) são os vinhos da linha Plansel, da linha Marquês de Montemor e da linha Family Estate, a que pertencem os que levam os nomes das filhas e também os batizados Dorina Lindemann.
Tanto tempo passado fora a promover a exportação exige gente de confiança na quinta, onde trabalham umas 40 pessoas durante todo o ano, mais na época das vindimas. Um papel importante, destaca Dorina, é o do engenheiro Carlos Ramos, que começou nos viveiros e trabalha com a família há mais de dez anos. E fala também de Adenilson, "o meu adegueiro brasileiro, 100% de confiança". Mas se hoje Dorina trabalha bem com homens, no início não foi bem assim, conta. "Quando cheguei era muito difícil lidar com os portugueses na quinta. Eram muito difíceis. Machistas. Dizia-lhes uma coisa e faziam antes à maneira deles. Tive de contratar duas mulheres para me ajudarem, as minhas Florbela e Florinda."
Quando fala de Portugal e dos portugueses, Dorina diz "nós". E quando elogia os vinhos portugueses diz " os nossos". É antigo o seu amor a Portugal, desde essas férias em criança que ela adorava mas o irmão não. Por causa do trabalho vai com frequência à Alemanha, "país com vinhos muito bons e onde cada vez mais gente descobre a qualidade dos vinhos portugueses", quando antes só conheciam os italianos, os franceses e os espanhóis. Confessa-se admiradora de Angela Merkel, do estilo de vida simples que a chanceler alemã pratica. "Tenho a certeza de que não é corrupta", sublinha.
Quanto às diferenças entre a pátria e o país de adoção, onde se fixou em 1993, "a mais significativa entre portugueses e alemães, é que a Alemanha, sendo um país do Noroeste Europeu, tem um sistema mais rígido e organizado. Em Portugal as regras são menos firmes e nem sempre inflexíveis. Mas acho que é algo muito típico das culturas latinas. Faz parte da identidade dos países do Sul da Europa, esta mentalidade mais serena. No entanto são povos extremamente trabalhadores. Já viajei muito por esse mundo fora e não encontrei ainda mulheres mais trabalhadoras e dedicadas como as mulheres do Alentejo. É como algo que lhes corre no sangue. As nossas mulheres que trabalham no campo, sob as condições climáticas mais adversas, não o fazem só por fazer... em cada gesto seu há uma devoção, um cuidado desmedido, um segredo só delas que faz que as nossas vinhas sejam sempre bem cuidadas". Mulheres alentejanas e mulheres alemãs, três. Em Montemor-o-Novo juntaram-se para fazer vinhos que pouco a pouco o mundo descobre. Vinhos portugueses do Alentejo com apelido alemão.

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