sábado, 22 de agosto de 2015

Vinhas históricas


Por Rui Falcão 

 21.08.2015  

Seguimos pelo mês de Agosto, a época do ano que a maioria dos portugueses reserva para o período de férias, o que me impele a continuar a abordar temas mais ligeiros, pequenas e grandes histórias sobre o mundo do vinho, que é igualmente um mundo pejado de preconceitos e certezas absolutas, um mundo que gosta de preservar as suas histórias independentemente de as mesmas poderem apresentar qualquer fundamento… ou não. 

 
Um desses muitos preconceitos garante que a história do vinho é reserva moral, patrimonial e espiritual dos países produtores europeus tradicionais, uma espécie de privilégio reservado ao velho continente, que segundo a lógica europeia seria dono e senhor de todas as tradições relevantes. Os países do novo mundo, dos restantes continentes, seriam por isso países sem tradição e sem passado vínico, países que teriam começado a produzir vinho há pouco mais de meia dúzia de anos. Tal como é apanágio dos mitos, também este é facilmente contrariado pela realidade e pelos factos.

Sim, é mais que evidente que as vinhas, as castas e a tradição enológica chegaram aos países do novo mundo com a colonização europeia, Ásia menor excluída. Mas, curiosamente, muitas das vinhas mais velhas ainda em produção encontram-se precisamente fora da Europa, nas antigas colónias da Europa imperial. Pensa-se que a vinha norte-americana mais antiga estará estabelecida na Califórnia, em Amador County, datando de 1850, ano em que terá sido plantada.

Mas as vinhas mais velhas ainda em produção, tirando casos muito pontuais nos pouquíssimos lugares onde a filoxera não conseguiu aniquilar as vinhas europeias, estão na Austrália. Entre elas merecem referência as vinhas Syrah de Château Tahbilk, vinhas que datam do distante ano de 1860. Ainda mais antiga é a vinha da Hewitson, da casta Mourvèdre, uma vinha situada em Barossa que terá sido plantada em 1853 e que ainda segue alegremente em produção. Mas as vinhas mais velhas da Austrália situam-se em Tanuda Creek, também em Barossa Valley, e pertencem ao famoso produtor Turkey Flat, uma vinha de Syrah que foi plantada em 1847.

A Europa perdeu infelizmente a maioria das vinhas muito velhas quando a praga da filoxera cá chegou, vinda do continente norte-americano. O que não significa que não existam vinhas históricas na Europa. Claro que se faz vinho na Europa há milhares de anos. Claro que o vinho foi influenciado e influenciou muitas das civilizações europeias, sobretudo aquelas que se situam mais a sul do velho continente.

Na verdade, o vinho influenciou mesmo aquela que é a religião dominante em muitos dos continentes, a religião cristã, tornando-se no centro da sacralização da celebração eucarística. O império romano foi um dos grandes difusores e inovadores na vinha e na enologia. Não sabemos com segurança como seriam os vinhos da época, mas sabemos que os habitantes de Pompeia eram entusiastas dos mistérios do vinho, como o atestam as reinas e os inúmeros frescos temáticos preservados sob os escombros da grande erupção do Vesúvio.

As escavações arqueológicas levadas a cabo na cidade ao longo das últimas décadas desvendaram a existência de cinco vinhas plantadas dentro dos limites da cidade. E foi precisamente uma dessas vinhas que foi recuperada e replantada com a ajuda da família Mastroberardino, um produtor clássico e histórico da região da Campania que há muito se celebrizou não só pelos seus vinhos como pela defesa intransigente dos valores da região.

Sem a tenacidade e o empenho pessoal de Antonio Mastroberardino em recriar as vinhas de Pompeia seria muito provável que já se tivessem perdido as castas antigas de origem grega que eram tradicionalmente usadas na região, variedades como o Aglianico, Greco di Tufo e Fiano d'Avellino, castas que entretanto voltaram a ganhar popularidade e notoriedade face à evidência qualitativa que demonstraram nesta vinha.

A vinha foi plantada utilizando as técnicas, compasso e formas de condução usadas há mais de dois mil anos segundo as inscrições nos frescos e os manuais de viticultura escritos por figuras como Plínio e Columella, autor de um tratado de agronomia e viticultura que é geralmente considerado como o documento técnico de viticultura mais antigo do mundo. Seguindo as indicações pormenorizadas por estes dois autores clássicos foram seleccionadas exactamente as mesmas castas do passado, recuperando variedades esquecidas como o Piedirosso e o Sciascinoso.

Foi seguida a densidade recomendada, oito mil plantas por hectares, amarradas a estacas de castanheiro e plantadas no mesmo local onde existiu uma das vinhas originais. O vinho continua em produção e todos os anos se enchem cerca de um milhar e meio de garrafas deste projecto histórico que permitiu recuperar variedades que muito provavelmente já teriam desaparecido do mapa.

Apesar de Mastroberardino seguir à letra a maioria das tradições e técnicas descritas nos tratados de Plínio e Columella… decidiu saltar algumas das receitas enológicas indicadas. Sim, o vinho continua a ser fermentado em ânforas de barro enterradas no solo, sofre macerações muito prolongadas, envelhecimento igualmente prolongado e não é filtrado antes de ser engarrafado.

Mas Mastroberardino preferiu descartar a sugestão de acrescentar ratos ou as suas cinzas ao mosto, tal como decidiu afastar a ideia de temperar o vinho com ervas aromáticas e outras especiarias para acrescentar sabor. Da mesma forma decidiram não revestir as talhas com resina, como faziam os romanos, já que o resultado adulterava o sabor do vinho para algo demasiado aproximado aos vinhos gregos conhecidos como Retsina.

O vinho "moderno", chamado Villa dei Misteri, é um vinho tinto opaco, duro, austero, especiado, taninoso e intenso que poderia facilmente ter sido guardado na adega durante mais um bom par de anos. Uma parte significativa da muito limitada produção é vendida em leilão com as verbas a serem reservadas para a renovação da vinha e restauro de Pompeia.


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