sábado, 22 de agosto de 2015

E, no entanto, há fogo posto…

FLORESTAS
Henrique Pereira dos Santos  Email
18/8/2015, 18:47

… só que não tem grande importância para a gestão dos fogos. É que a questão não está em saber por que razão começa um fogo, mas sim por que razão, em alguns dias, não se conseguem parar.

É verdade que o problema da gestão do fogo em Portugal é mais complicado que no resto do mundo, pelas mesmas razões de solo e clima que o tornam o maior produtor mundial de cortiça.

Por isso, a meio da primeira semana de Agosto escrevi algures que a manterem-se as previsões meteorológicas para o segundo fim de semana de Agosto, a conversa das condições meteorológicas excepcionalmente desfavoráveis a para a gestão do fogo, a que o dispositivo de combate ia dando resposta, seria substituída pela conversa dos incendiários.

Sem surpresa, a partir de 9 de Agosto, Domingo, e mais acentuadamente nos dias seguintes, lá apareceram nos jornais os incendiários.

Porque os jornalistas resolveram falar no assunto?

Não, de maneira nenhuma, apenas porque os jornalistas há anos que repetem acriticamente o discurso dominante sobre o assunto – dos responsáveis e a vox populi – sempre que as condições meteorológicas se tornam muito favoráveis para a propagação dos fogos. E também porque no fim de semana o vento virou a Leste, felizmente por pouco tempo e sem vento forte.

Não é um problema especificamente Português, nos recentes fogos na Califórnia lá emergem as figuras de suspeitos de fogo posto, no ano em que na Galiza houve quase dez dias de vento Leste, e consequentemente ardia por todo o lado, havia quem falasse em organizações terroristas, na Austrália, no Chile, seja onde for que os incêndios fiquem fora de controlo, o que acontece sempre que se verificam algumas condições meteorológicas extremas, lá vem o discurso do incendiário.

E, no entanto, está perfeitamente estabelecida a ligação entre o aumento de ignições e a existência de condições meteorológicas extremas.

E, no entanto, está perfeitamente estabelecido, para Portugal, que 80% da área ardida se concentra em 12 dias por ano (os tais das condições extremas, mas não medidas por este índice de severidade que agora serve aos responsáveis para dizer que as condições são mais difíceis que em 2003 ou 2005, numa leitura não sei se criativa ou se ignorante, sobre a forma como esse índice é calculado).

E, no entanto, está perfeitamente estabelecido que cerca de 40% das ignições registadas no sistema de registo da protecção civil são no período da noite, administrativamente estabelecido entre as 8 e a 20 horas, portanto deixando muito dia de fora, no Verão e sem que essa percentagem varie grande coisa com as condições atmosféricas (não confundir com ignições reais, o sistema só regista o que atinge dimensões mínimas para ser registado, não as milhares e milhares de ignições que existem em cada dia, pelas mais variadas e prosaicas razões, mas que não têm qualquer desenvolvimento posterior).

E, no entanto, está perfeitamente estabelecido que mais de 90% da área ardida resulta de menos de 1% das ignições, o que rapidamente permite concluir que reduzir fortemente as ignições pode não ter qualquer efeito na redução da área ardida.

E, no entanto, está perfeitamente estabelecida a falta de correlação entre os anos de maior número de ignições e os anos de maior área ardida.

E, no entanto, está perfeitamente estabelecida a correlação entre o maior número de ignições e a presença de mais gente, por isso o distrito do Porto e envolventes são os que concentram o maior número de ignições, e a correlação entre área ardida e a falta de gente e de gestão, por isso os distritos que mais ardem são aqueles em que se verificou maior abandono agrícola.

Se o actual jornalismo fizesse a cobertura do julgamento de Galileu, suspeito que faria umas reportagens muito interessantes.

Entrevistaria os julgadores e os responsáveis pelo processo, e depois sairiam para a rua a perguntar às pessoas comuns se era ou não verdade que o Sol andava à volta da Terra. Tal como sobre a origem dos fogos, qualquer pessoa apontaria para a evidência do Sol se levantar do lado das serras e se pôr do lado do mar para concluir que Galileu não tinha a menor razão no que dizia.

E, no entanto, ela mover-se-ia sempre, independentemente do que dissessem os jornais.

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