domingo, 2 de novembro de 2014

O rei das laranjas casou-se com a rainha das bananas

José Manuel Rocha 01/11/2014 - 09:34 

Os brasileiros prosseguem o ataque ao universo de marcas icónicas dos Estados Unidos. Esta semana, a Cutrale, uma das maiores produtoras mundiais de sumo de laranja, com vastos laranjais no estado de São Paulo, comprou a maior produtora de banana do planeta, a norte-americana Chiquita.
 
As bananas Chiquita têm um novo dono PAUL J. RICHARDS/AFP 


Foi o negócio da semana. A Cutrale, empresa brasileira que é um dos maiores produtores de laranja do mundo, aliou-se a um banco local (da família Safra) para comprar a norte-americana Chiquita, que todos conhecemos do rótulo das bananas que estão nas prateleiras da quase generalidade dos supermercados portugueses.

O valor do negócio não impressiona — ultrapassa pouco os 1200 milhões de dólares. O que fica para a história é a criação daquele que passará a ser, provavelmente, o maior conglomerado do mundo na área das frutas e o facto de ser mais um tiro brasileiro no porta-aviões das supermarcas dos Estados Unidos. No espaço de poucos anos, investidores do Brasil tomaram conta, entre outras, da cerveja Budweiser, do ketchup Heinz, da cadeia de restauração Burger King e, agora, da Chiquita. Mas há outras companhias brasileiras a meter o pé no acelerador da internacionalização. A Camargo Correa, que comprou a Cimpor, a mais importante multinacional portuguesa, é outro dos exemplos.

Com a economia interna a claudicar e a crise a posicionar-se como a principal dor de cabeça de Dilma Roussef para o segundo mandato que conquistou no domingo passado, a fome dos investidores pelo exterior parece não ter limites. Mas é também a necessidade de ganhar dimensão para actuar em mercados cada vez mais concorrenciais.

No caso da Cutrale, um conglomerado industrial cujas origens remontam ao início do século passado e ao sector do comércio, são também os sinais de algum declínio no consumo de sumos de laranja que leva a empresa a procurar outros domínios que lhe acrescentem oferta e margem de negociação com as grandes cadeias retalhistas.

A história da Cutrale remonta ao início do século passado, quando Giuseppe Cutrale deixou os laranjais da Sicília (Itália) e emigrou para o Brasil. Num quadro de grandes dificuldades, espreitou a oportunidade em São Paulo, onde montou uma banca de venda de laranjas no mercado municipal. Abastecia-se, então, nos subúrbios do Rio de Janeiro, onde as plantações do citrino abundavam. Alguns anos mais tarde, começou a exportar laranjas para a América do Norte e para alguns países europeus, mas a eclosão da II Guerra Mundial acabou por lhe furar os planos e o negócio da família começou a claudicar.

Foi então que um dos filhos de Giuseppe decidiu procurar outros caminhos e percebeu que o futuro passava pela área industrial. Assim nasceu a Sucocítrico Cutrale e a primeira fábrica a transformar a laranja em sumo, para um mercado que começava a ganhar dimensão.

Quem manda hoje na companhia familiar é José Luís Cutrale, que tem tanto de rico como de discreto. Diz-se dele que detém uma das maiores fortunas do Brasil, situando a revista Veja o valor real de activos em cerca de 5000 milhões de dólares. Raramente é visto em cerimónias públicas e a imprensa tem dificuldades em conseguir uma fotografia para ilustrar os seus trabalhos.

É também conhecido por ser um negociador implacável com os produtores de laranja, o que já lhe valeu vários processos, apesar de a companhia dispor de mais de 50 mil hectares de laranjais, especialmente no estado de São Paulo. Foi no meio de uma destas propriedades que Cutrale decidiu criar um condomínio fechado onde, para além da casa dele, a maior e com piscina, estão as moradias dos restantes administradores da Cutrale. Assim, qualquer dia da semana ou qualquer hora do dia é boa para acertar uma estratégia ou para montar um negócio.

O mais recente, a aquisição da norte-americana Chiquita, não foi fácil. A maior produtora de banana do mundo, muitas vezes acusada de manipular governos e de explorar os pequenos agricultores na América Latina dado o seu potencial de compra, foi alvo da cobiça da irlandesa Fyffes, também ela ligada à produção de frutas tropicais e dona de um excepcional know-how na área das saladas pré-lavadas e embaladas.

Mas Cutrale, na posse de indicadores que mostram algum abrandamento na procura de sumos (ele fornece a Coca-Cola e a Nestlé, por exemplo), não deixou fugir a oportunidade. Aliado ao Banco Safra, aumentou a base de oferta pela Chiquita e acabou por ganhar a parada.

Esta manobra não foi a primeira e, muito menos, a única na tendência dos brasileiros para comprarem activos de renome nos Estados Unidos — onde, aliás, os japoneses adquiriram recentemente outro ícone no mercado de consumo, o whisky Jim Beam. A companhia que era dona da cerveja Budweiser, fundada em meados do século XIX na cidade de St. Louis, nas margens do rio Mississipi, foi também alvo do apetite de investidores brasileiros e apesar das ondas de choque que a proposta de compra provocou nos EUA — uma espécie de comoção nacional em torno de uma marca era parte do orgulho nacional — a companhia acabou por mudar de mãos.

Neste caso, foi para a órbita de influência da Inbev, um conglomerado de dimensão mundial que começou com a aquisição, por parte de três investidores brasileiros, da empresa que fabricava a cerveja Brahma. Estabilizado este negócio, os três investidores (Jorge Paulo Lemman, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, todos eles no top-ten dos bilionários do país) avançaram para a compra da sua principal rival interna, responsável pela marca Antárctica.

Através de uma estratégia faseada, liderada por um gestor (Carlos Brito) que é um workaholic conhecido pelo rigor que põe nos negócios, foi criada uma forte base industrial e operacional que permitiu sonhar com outros voos. E, como se costuma dizer no Brasil, quando os três empresários sonham, a obra nasce. A etapa seguinte foi comprar a Inbev, que tinha no seu portfolio de produtos as cervejas Stella Artois e a Boehmia, duas das mais vendidas do mundo.

Ao assumirem uma operação que envolvia muitas dezenas de milhões de dólares, Lemman, Telles e Sicupira geraram uma onda de incrudelidade no mercado e foram muitas as vozes que vaticinaram que o negócio tinha tudo para correr mal, dada a montanha de dívida bancária que foi preciso subscrever.

A resposta veio pouco tempo mais tarde, quando a tripla de investidores se abalançou, e conseguiu, comprar a Anheuser-Busch (AB), dona da icónica Budweiser, que é presença frequente nos filmes de Hollywood e nas séries das dezenas de produtoras norte-americanas. Foram mais 52 mil milhões de dólares de investimento. Surgiu assim a AB Inveb.

Neste negócio, que mobilizou as atenções do mundo, Lemman arriscou até ao limite e pôs em prática algumas das ideias que mantém na mesa de cabeceira. "Tem gente que fala muito, fala bonito, mas que não faz, não acontece. Tem outros que nem falam tanto e fazem de uma maneira diferente, mas que de alguma maneira conseguem chegar lá", costuma defender nas suas raras aparições públicas.

Jorge Paulo Lemman, considerado o principal cérebro e o cofre-forte do trio de empresários, é, como José Luís Cutrale, um homem que cultiva a discrição e que sempre protegeu a família da curiosidade pública. Há uns anos, uma das suas filhas foi raptada, quando era conduzida para a escola. Em estado de choque, Lemman pagou o resgate e mudou o domicílio para a Suíça.

Foi de lá que lançou outro ataque ao porta-aviões yankee. Quando apontou para a compra da Burger King, uma das maiores cadeias mundiais de hambúrgueres e igualmente uma marca que se repete na paisagem portuguesa de consumo.

Aqui, Lemman e os seus pares não avançaram sozinhos. Num modesto escritório em Park Avenue, na zona de Manhattan onde os grandes grupos financeiros têm enormes instalações decoradas com Monets, Kandinskis e Picassos, equipas de assessores dos investidores brasileiros acertaram os detalhes da compra com estrategos do multimilionário Warren Buffett.

Recentemente, a Burger King anunciou a intenção de adquirir a canadiana Tim Hortons, que gere uma cadeia de cafés e bolos. O objectivo era transferir a sede da cadeia para norte, por razões de eficiência fiscal. As recentes medidas anunciadas pela administração Obama para dificultar estes movimentos poderão tornar a aquisição menos apetitosa.

Pouco depois, a mesma dupla avançou para a compra da Heinz, conhecida por ser uma das maiores produtoras mundiais de ketchup e outros produtos derivados de tomate, sopas, feijões e massas, produtos para bebés e muitos outros. A companhia foi fundada em 1869, no estado da Pensilvânia e, à data da venda, era controlada por Teresa Heinz, mulher do antigo herdeiro e presidente, que entretanto tinha falecido. Teresa é, actualmente, a esposa do secretário de Estado John Kerry.

Os Estados Unidos têm sido um dos principais alvos para as investidas financeiras dos brasileiros. Mas não só. Com um sistema bancário que não cessa de apoiar as jogadas, mesmo de risco, dos promotores locais, as oportunidades podem ser aproveitadas nos quatro cantos do mundo. Portugal não é excepção. E o sector dos cimentos foi um dos eleitos. Quando a santa aliança Teixeira Duarte

BCP começou a perder fulgor e o centro de decisão nacional na cimenteira entrou em declínio, o apetite brasileiro despertou e chegou a haver dois grupos (Camargo Correa e Votorantin)  interessados na empresa, que era e é a mais importante multinacional de raiz portuguesa.

Após um complexo processo de ofertas e contra-ofertas, a Camargo acabou por assumir o controlo de Cimpor, assegurando um crescimento orgânico assente no facto de a cimenteira possuir unidades de fabrico em três continentes — Portugal, Egipto, Moçambique, África do Sul, Angola, Cabo Verde, Brasil, Paraguai, México e Argentina.

Há muito que a Camargo sonhava com a empresa portuguesa, como reconheceu um dos seus gestores. No dia em que o negócio ficou concluído, José Édison Barros (líder da Intercement, a sociedade através da qual a Camargo formalizou a compra) revelou que "este controlo era parte determinante da estratégia definida pela companhia". E acrescentou que o ambiente económico em Portugal (2012) ajudou ao desfecho favorável "porque alguns accionistas precisavam de vender as suas participações". Para Portugal, foi mais um chamado centro de decisão nacional que se perdeu. 

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